quinta-feira, 3 de setembro de 2009

CAP. 05 - FIL. E CIÊNCIA - FIL - CRÍTICA E IDEOLOGIA

CAPÍTULO 05
A Filosofia é a consciência da ciência (Montaigne)
FILOSOFIA E CIÊNCIA - FILOSOFIA, CRÍTICA E IDEOLOGIA
Dada a importância da ciência, vamos tratar, neste espaço do livro, do relacionamento entre filosofia e ciência em suas características convergentes e divergentes.
No tempo dos gregos, bem como na Idade Média, “ciência” e filosofia viviam harmonicamente. A filosofia era como o tronco da árvore cujos ramos eram as ciências. Esta intimidade era tão grande que muitos analistas chegam a negar a existência da ciência naqueles tempos. Realmente, não havia na ciência grega um processo de descoberta. Os princípios eram intuídos. Faltava o controle quantitativo e matemático das variáveis. O que havia era um processo de demonstração pela lógica silogística.
Entretanto, no Renascimento - século XVI/XVII - iniciou-se a separação entre filosofia e ciência, com a revolução científica, desencadeada por Copérnico, Francis Bacon, Galileu e Descartes. Esta revolução científica consistiu em três acontecimentos de suma importância:
1 - A criação da indução científica[1]
Até aí o conhecimento se fazia por intuição e dedução.[2]
2 - A introdução do uso dos instrumentos tecnológicos[3]
3 - A criação da dúvida metódica
Até então o argumento usado para garantir a verdade do conhecimento era a autoridade. Não se podia contradizer a autoridade. Um dos maiores méritos de Descartes é, enfrentando o autoritarismo e o dogmatismo aristotélico-tomista, ter-nos ensinado a duvidar.
Estes três fatores são tão importantes que a maioria dos pensadores afirma que a ciência propriamente dita foi criada aí - no Renascimento - pois sem a indução e quantificação dos dados induzidos, não há ciência: e isto só acontece quando se aplica a matemática ao conhecimento - o que não acontecia antes da Renascença. O mesmo se pode dizer do uso dos instrumentos de alta precisão. Por outro lado, “a dúvida metódica”, impulsionando a pesquisa experimental, impedindo que o conhecimento se estratificasse, foi de grande valia para o novo conceito de ciência.
A separação entre filosofia e ciência se tornou quase uma guerra, nos séculos XVIII e XIX; neste último, chegou-se ao ponto extremo, quando Augusto Conte decretou a morte da filosofia, substituindo-a pelo estado da positividade, da cientificidade. O que resultou naquilo que, hoje, chamamos de cientificismo[4]
O que vemos, então, é a” digladiação” entre cientistas e filósofos, com grande prejuízo para o conhecimento humano.
É pena, pois são dois conhecimentos determinados, com estatuto específico; ainda que independentes em seus níveis, são eles igualmente necessários para a humanidade. Poderíamos comparar esses conhecimentos aos dois trilhos por onde corre uma locomotiva: se estes trilhos se conservam lado a lado, sem se afastarem, mas também sem se afunilarem, só temos a ganhar com isto.
Já se disse que a filosofia é a consciência da ciência. Aqui, a bem da verdade, devemos reconhecer que a filosofia precisa da ciência. Esta se torna, cada vez mais, a rica fornecedora de matéria prima, para a reflexão filosófica. A ciência, com seu rigorismo metodológico, tem ajudado a filosofia a deixar de ser uma tribuna livre em que cada um diz o que quer, a ser menos subjetivista[5], a se afastar do “achismo” tão nefasto a qualquer conhecimento.
Ambos os conhecimentos são necessários. A filosofia compreende, a ciência explica.
Explicar, como já vimos nos capítulos anteriores, é determinar as condições de um fenômeno, é prender a realidade nas malhas de conceitos lógicos, não se preocupando com a realidade total do ser humano. Ao contrário, o termo compreensão significa muito mais. Possui uma conotação afetiva e sinaliza o ato de se colocar no lugar do outro, de compartilhar com ele, em seu fazer.
A compreensão só pode acontecer na filosofia, Philos = amigo; sophia[6] = sapientia = sentir sabor. É sentir o sabor das coisas, de sua totalidade, de sua visão onímoda (holística).
A partir do século XVII, começaram a aparecer as ciências ditas “particulares”, em contraposição à “ ciência geral” - à filosofia. As ciências emergentes se dizem particulares, porque seu campo específico é limitado. Por exemplo: a Física só trata do movimento; a Química só trata da composição dos corpos; a Biologia só cuida da vida das células nas suas ramificações imediatas; a História só cuida das ações do homem no tempo; a Sociologia, das relações entre as pessoas e grupos; a Psicologia, das estruturas mentais e do comportamento observável. Enquanto isto, a Filosofia continua tratando destas mesmas realidades, mas sob o aspecto da totalidade, radicalidade e criticidade.
A ciência, diante da realidade experimentada, formula juízos de realidade, ao passo que a filosofia, diante da realidade vivida, formula juízos de valor. Por isso, Jaspers teve condição de afirmar: Uma ciência não pode ensinar a alguém o que deve fazer, mas apenas o que pode fazer, para atingir seu fim por meios estáveis.(MILHOLLAN & FORISHA, 1972: 65-66)

A ciência é objetiva, a filosofia é subjetiva
Objeto é o que existe fora da mente. A ciência se afasta do objeto para melhor formular as leis que o regem. A filosofia é subjetiva; aproxima-se do objeto para impregná-lo de seu afeto, abraçá-lo ternamente, sentindo seu sabor” sapientia “. Platão disse que a filosofia começa com a admiração. A ciência, por ser objetiva, presume-se neutra, enquanto a filosofia procura administrar as ideologias, sabendo-se vulnerável.
A ciência é teórico-prática e a filosofia é teórico-teórica
A ciência é teórica, pois se faz com conceitos, já que, sem estes, não é possível nenhuma generalização. E as leis científicas são generalizações de coisas particulares. Entretanto, a ciência é, eminentemente, prática, pois tem como finalidade imediata, subsidiando a técnologia, procurar conforto para o ser humano.
A filosofia, por sua vez, ainda que preocupada, a longo prazo, com a vida plena do homem, é um conhecimento teórico, pois sua matéria prima são as idéias.
Identificados estes sinais diferenciadores entre filosofia e ciência, é hora de encerrar este item com uma última reflexão. A ciência navega de braçada no mar imenso da curiosidade humana; seu progresso é geométrico. A filosofia, por sua vez, desenxabida, recusada, contestada, perseguida, execrada, pulverizada, qual fênix ressurge das cinzas. Seu método mântrico é o mesmo do mito de Sísifo.

Filosofia e Crítica
Já abordamos os temas da criticidade, no cap 02, item 03 e no cap. 03, ao tratarmos das características da filosofia.(Ver Chauí, p. 18 e 23) Dada sua importância e suas conseqüências para a vida, achamos por bem tratar do assunto em capítulo especial. E como a mais importante função da crítica é descobrir o conteúdo silenciado - a ideologia - resolvemos unir neste capítulo os dois temas.
A Crítica
A palavra crítica é nova. Foi criada por Kant que se inspirou no verbo grego” crinein” que significa separar. A palavra é nova, mas a realidade coberta por ela, é tão antiga quanto a própria humanidade.
A idéia primordial da palavra crítica, é a idéia de separação. O ato de julgar é o ato supremo de distinção do ser humano. Mas para julgar é necessário separar; por isso, segundo Kant, o processo crítico começa com a separação.
A crítica contempla as duas faces marcantes da filosofia: uma negativa e outra positiva. A primeira é um não às crenças do dia-adia, aos “pré-conceitos”, aos “pré-juízos”, ao fundamentalismo, ao sectarismo, ao mecanicismo antropológico, ao cientificismo/objetivismo, “falou, tá falado”, à facticidade, à brutalidade dos fatos, ao determinismo, ao fideismo, à moral de resultados, ao estabelecido pelo poder dominante ou pela sociedade. A segunda é uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, os comportamentos, os valores, nós mesmos; uma interrogação sobre o porquê, o como disso tudo e de nós mesmos – para descobrir, esclarecer e propor mudanças A transcrição abaixo “O rei está nu” muito nos ajudará a ter uma idéia clara sobre a caracterização da crítica como processo de descoberta.
Em geral, julgamos que a palavra “crítica” significa ser do contra, dizer que tudo vai mal, que tudo está errado, que tudo é feio ou desagradável. Crítica é mau humor, coisa de gente chata que julga saber mais do que os outros. Mas não é isto que essa palavra quer dizer.
A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais: 1) capaci- dade de discernir, julgar e decidir corretamente;[7] 2) exame racional de todas as coisas sem pré-conceito e sem pré-julgamento[8]; 3) atividade de examinar e avaliar detalhadamente uma idéia, um valor, um costume, um comportamento, uma obra artística ou científica...”[9] (Chauí, 2006 : 18).
Para todos os efeitos, no entanto, o papel da crítica não é contrapor verdade[10] e erro, bem e mal, e muito menos diminuir, deprimir ou amofinar quem quer que seja. Trata-se de descobrir o conteúdo silenciado. O que não significa ainda emitir juízos de valor. Este conteúdo silenciado pode ser de um discurso; de um projeto; de uma promessa; de uma lei; de uma obra de arte: estátua, pintura, música ou qualquer coisa promovida pela ação humana.
Criticar é seguir os critérios que estão inscritos na própria visão de mundo. Ter critério é possuir uma norma para distinguir o que é adequado do não adequado, do que é aceitável do que não é, do que se deve fazer ou não fazer
A crítica segue, mais ou menos, o seguinte roteiro. Diante de um todo sincrético (confuso) cabe-nos codificá-lo e decodificá-lo (organizar para analisar). O segundo passo é o da análise: dividir em partes. Terceiro passo: vamos dar-lhe uma visão de conjunto; vamos sintetizá-lo. Notar que a síntese não é simplesmente ajuntar as partes. “A soma das partes não faz o todo”. A síntese é sempre um conhecimento compreensivo que somente a filosofia pode oferecer, dada sua visão de totalidade tanto da parte do objeto como, sobretudo, da parte do sujeito, que se investe todo nesta ação. A síntese é uma totalização objetiva e subjetiva.
Ao perfazer essa travessia, separando e refazendo, a crítica, porém, vai cumprir uma missão muito árdua: ler nas entrelinhas, fazer um trabalho de escavação para encontrar o conteúdo silenciado; silenciado de propósito, ou inadivertidamente. Ao realizar este trabalho, a crítica pode encontrar “uma obra de pensamento”, na expressão de Marilena Chauí, isto é: algo bom que vai enriquecer a personalidade cultural do crítico. É o tesouro do saber. Mas, geralmente, o que a crítica vai encontrar é um conteúdo silenciado, de propósito, para enganar, visto não apresentar a gênese do processo. A crítica, então, encontrou uma ideologia no sentido marxista, como veremos nos próximos passos..
. Por outra, criticar é conhecer a realidade, melhor dizendo, é mostrar a nudez da realidade.
A propósito, vamos contar a seguinte Estória, extraída de Claudino Pillet, p. 13-16:
“O rei está nu”
Há muitos anos, vivia um rei que gostava muitíssimo de roupas novas e bonitas. Tinha um traje para cada hora do dia. A grande cidade onde ele residia era alegre e movimentada; todos os dias ali aportavam muitos viajantes. Um belo dia, chegaram dois trapaceiros que, fazendo-se passar por tecelões, anunciaram que sabiam tecer panos maravilhosos. Não só as cores e os padrões de seus tecidos eram algo fora do comum como também as roupas, com eles feitas, tinham um extraordinário predicado: o de se tomarem invisíveis para as pessoas que fossem simplesmente néscias.
Que roupas formidáveis! - disse de si para si o rei. - Fazendo-as vestir, eu poderia saber que homens, no meu reino, não servem para o cargo que ocupam. Poderei, também, distinguir os sábios dos néscios. Quero que esses panos sejam imediatamente tecidos!
“E deu desde logo muito dinheiro aos dois trapaceiros, para que começassem, sem perda de tempo, a trabalhar.
Os dois montaram dois teares, fingiram trabalhar, mas não tinham fio nenhum no aparelho. Pediram as sedas mais finas e o ouro mais puro, que meteram no próprio saco e, pela noite adentro, trabalharam nos teares vazios.
‘Bem gostaria eu de saber até que ponto adiantaram o tecido’, pensou o rei. Teve, porém, uma sensação esquisita ao pensar que os néscios e os que não estavam à altura dos seus cargos não podiam ver o pano. Imaginava, naturalmente, que por si próprio, nada deveria temer, mas, por via das dúvidas, preferiu mandar primeiro outra pessoa, para ver como iam as coisas. Todos os habitantes da cidade já sabiam da maravilhosa virtude que aquele tecido possuía e ansiavam por ver quanto o vizinho era tolo ou incompetente.
Vou mandar meu velho e honrado ministro ver os tecelões - pensou o rei. - É quem melhor poderá ver como está o tecido, pois é homem inteligente e ninguém serve melhor que ele para o seu cargo.
O velho e honesto ministro entrou na sala onde os dois trapaceiros trabalhavam nos teares vazios.
Meu Deus do céu! - murmurou o velho ministro, arregalando os olhos. - Eu nada vejo! - Mas não o disse a ninguém.
Os trapaceiros pediram mais dinheiro, mais seda e mais ouro, a fim de prosseguirem com o trabalho. Meteram tudo nos bolsos, e para os teares vazios não foi um só fio. Nele os espertalhões continuaram a fingir que teciam.
O rei não tardou a enviar outro alto e honrado funcionário, a ver como ia o serviço, se faltava muito para a conclusão do tecido. Aconteceu-lhe o mesmo que ao ministro: o homem olhou e tomou a olhar, mas como só havia teares vazios, ele nada mais pôde ver.
Mas, pôs-se a elogiar o tecido que não via, manifestando sua satisfação ante tão belas cores e tão gracioso padrão.
O rei quis, então, ver com os próprios olhos a fazenda, enquanto ela ainda estava no tear. Com um grande grupo de homens escolhidos, do qual faziam parte os dois velhos e honrados funcionários que antes lá haviam estado, foi ele à sala onde os dois trapaceiros teciam, incansavelmente, sem um só fio de linha.
Então, não é magnífico! – exclamaram, ao mesmo tempo, os dois altos funcionários. - Queira Vossa Majestade ver que padrões. Que lindas cores!
E apontavam o tear vazio, pois acreditavam que os outros deviam estar vendo o tecido.
‘Não é possível!’, pensou o rei. ‘Eu nada vejo! Isso é horrível! Serei tão estúpido, ou simplesmente não servirei para ser rei? Seria a pior coisa que me poderia acontecer!’
É, de fato, muito belo - disse ele. - Tem minha inteira aprovação! E sacudiu satisfeito a cabeça, contemplando o tear vazio.
Não queria dizer que nada via. Os numerosos componentes da comitiva, sem exceção, olhavam, mas, por mais que o fizessem, nada logravam ver. Secundaram, porém, o rei em seus elogios.
Como é bonito! - diziam, aconselhando o rei a mandar fazer um traje daquela magnífica fazenda e a usá-la, pela primeira vez, na grande procissão que iria realizar-se dali a dias.
Magnífico! Esplêndido! Formidável! - eram as exclamações que se ouviam, de boca em boca.
O rei condecorou os dois trapaceiros e deu-lhes o título de Cavaleiros do Tear.
Os trapaceiros passaram, em claro, a noite que precedeu a manhã da procissão, com dezenas de luzes acesas. Todos podiam ver que trabalhavam febrilmente, empenhados em terminar as roupas do rei. Fizeram de conta que retiravam o pano do tear e o cortavam no espaço com grandes tesouras, costurando-o com agulhas sem linha.
As roupas estão prontas! - anunciaram por fim.
O rei compareceu ao local, acompanhado por seus mais nobres cavaleiros. Os dois trapaceiros ergueram o braço, fingindo segurar alguma coisa.
Aqui estão as calças. Cá está o casaco. E aqui, o manto - disseram. - O tecido é tão leve como teia de aranha. Parece que não se tem nada no corpo. Nisso está a grande virtude dele ...
O rei tirou a roupa, e os trapaceiros fingiram dar-lhe, peça por peça, o traje novo.
Como ficam bem! São esplêndidos estes novos trajes! Que padrões! Que cores! - era o que se ouvia ao redor.
E assim o rei desfilou na procissão, enquanto nas ruas e nas janelas todos comentavam:
Meu Deus, como são lindos os novos trajes do rei! Como lhe ficam bem!
Todos dissimulavam, ocultavam que não estavam vendo coisa alguma, pois do contrário, teriam passado por imprestáveis para o cargo que ocupavam, ou se revelariam néscios. Nenhuma roupa do rei havia despertado tanta admiração.
O rei está nu! - disse uma criança.
Meu Deus! Falou a voz da inocência! - disse o pai da criança. E cochichou para outro o que a criança dissera.
Ele está nu - correu de boca em boca. - Uma criança está dizendo que ele está nu.
Ele está nu! - clamava, por fim, todo o povo.
O rei sentiu um abalo, pois lhe parecia que falavam a verdade. “Agora tenho que agüentar, até o fim, a procissão - murmurou ele - Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes, continuaram a segurar o manto que não existia”.
.
Filosofia e Ideologia
No item anterior, vimos que a crítica exerce a função de desnudar a realidade, descobrir a gênese do processo ou o conteúdo do silenciado. Pois bem, o “conteúdo silenciado” nada mais é do que a própria ideologia. Qual o conceito de ideologia? Qual sua função? É o que veremos agora.
Como a palavra crítica, ideologia é também uma palavra nova. Foi criada ao tempo de Napoleão, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, para significar a ciência das idéias, compreendendo seu estudo e seu desenvolvimento. Posteriormente assumiu outros sentidos.
Ideologia no sentido genérico
No sentido amplo, amplo, ideologia é o conjunto de idéias, doutrinas, concepções e opiniões sobre algum ponto polêmico. Ideologia é conjunto sistemático de conhecimentos intencionalmente destinados a orientar ações imediatas[11]. Neste sentido, se enquadram as seguintes perguntas, entre outras: Qual é a ideologia desta escola? Qual a ideologia desse partido?
Vemos que, ao se pensar assim, não haveria distinção entre ideologia e filosofia. Entretanto, afirmamos que existe diferença, sim. Ideologia (sentido amplo) labora no tempo imediato e a filosofia labora no longo prazo. Notar que neste sentido se enquadra a concepção de Gramsci e Mannheim.
Ideologia no sentido estrito
O sentido estrito ou propriamente dito da ideologia foi teorizado por Marx, ao estender o conceito de ideologia ao nível econômico e social, ampliando e precisando assim sua abrangência. Ainda é uma caracterização imperfeita, pois ressalta, de maneira exagerada, a esfera do econômico e do político. Mas este passo inicial teria que ser dado.
Nesta perspectiva, a ideologia (no sentido estrito) é uma consciência invertida[12] da realidade, elaborada pela classe dominante, com a finalidade de mascarar a divisão de classe, mantendo assim a situação vigente de dominação. Nesta visão, a ideologia é algo inteiramente negativo e insidioso.
A citação, abaixo, de Marilena Chauí, é uma explicitação e atualização do pensamento marxista.
O que é ideologia?[13]
...ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, e que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade, dividida em classes, uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. (CHAUI. 1980 : 113).
Nesta citação, identificamos as seguintes proposições explícitas ou implícitas, sinalizando que: a) a ideologia tem a função de justificar as diferenças sociais, sem jamais atribuí-las à divisão de classe – que é o conteúdo silenciado (no caso propositalmente, para enganar); b) a ideologia é um discurso lógico, sistemático e coerente; c) ideologia assegura a coesão social e a aceitação, sem críticas, das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da “vontade de Deus” ou do “ dever moral” ou como decorrência da ordem natural das coisas; d) a ideologia é prescritiva: impõe o que se deve pensar e como se deve pensar, o que se deve valorizar e como se deve valorizar, o que se deve sentir e como se deve sentir, o que se deve fazer e como se deve fazer; e) a ideologia não é mentira. Mentira é pensar uma coisa e dizer outra[14]– nela não há representação
Glosando o texto de Marilena Chauí com as idéias de Pierre Furter p. 51-60 - Maria Lúcia Aranha, p. 61-68, Gilberto Cotrim, p. 56-61, podemos relacionar, na perspectiva mar-xista, as seguintes características nefastas da ideologia:
Naturalização: considerar como obra da natureza, situações que, na realidade, são pro-duzidas pela ação humana e, como tal, são situações históricas e não naturais: quando, por exemplo, se considera-se natural que a sociedade seja dividida entre ricos e pobre, ou que uns nasceram para mandar e outros para obedecer
Anterioridade: em razão desta anterioridade, deste apriorismo, como assinala muito bem o texto citado, a ideologia predetermina o pensamento e a ação, desprezando a situação histórica, a realidade social vigente e a prática, na qual cada pessoa se insere, vive e produz. È em nome desta anterioridade e deste apriorismo que se introduz no imaginário do povo a concepção de que as idéias caem do céu, ou são gestadas nas cabeças de pessoas privilegiadas, quando, na realidade, sua matriz é a luta do ser humano para conseguir sua subsistência. Generalização (abstração): Aqui temos duas linhas de raciocínio: a) a ideologia tem como finalidade produzir um consumo coletivo em torno a certas idéias, valores, normas, regras e preceitos. Com isto, generaliza para toda a sociedade aquilo que corresponde aos interesses específicos dos grupos ou das classes dominantes; b) a ideologia desvincula as idéias do plano real para o plano da abstração. Quando se diz: “o trabalho dignifica o homem”, isto é uma abstração, pois não está de acordo com a realidade. Quando se faz afirmação desse tipo, é que se desconhece (geralmente de propósito) a gênese do processo, pois o trabalho alienado ou do “bóia-fria” não dignifica ninguém..
Lacuna.
“...a ideologia desenvolve-se sobre uma lógica construída na base de lacunas, omissões, de silêncios e de saltos. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar, falsear em vez de esclarecer, esconder em vez de descobrir. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas ‘verdades’ devem parecer[15] naturais, plenamente justificadas, válidas para todos os homens e para todo e sempre”.
“A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois, sendo missão da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria”. (CONTRIN, 1997 : 57-58).
Exemplo de lacuna: “Todos têm direito à educação”. O discurso não diz que esse “todos” só se refere aos que possuem condições de subsistência não só material mas cultural.
Essa afirmação é lacunar, ao apresentar como universal aquilo que não beneficia a todos: os pobres, por diversos motivos, acabam ficando de fora. Por muito lógicas que sejam as justificações que se dêem, o que permanece oculto é que há contradição entre os que, com seu trabalho, produzem a riqueza material e cultural e os que se apossam dessas riquezas. Portanto, analisando a gênese do processo, descobre-se que a educação está restrita, em grande parte, aos que detêm o poder.
Alienação: o conceito de alienação tem vários sentidos. No sentido jurídico, alienada é a pessoa que perde a posse de um bem ou de um direito; para a psiquiatria, é a pessoa que perde a dimensão de si na relação com os outros; no sectarismo, radicalismo e idolatria, perde-se a autonomia. Etimologicamente, alienação vem do latim “alienare” → “alienus” que pertence ao outro; “alius” é o outro. Alienar é transferir para o outro aquilo que é seu.
Para os neo-marxistas, alienação é o estado da pessoa que retira as explicações de sua situação, não do mundo objetivo, mas de um mundo que não existe ou é transcendente. A alienação desvia os dominados de encontrar a gênese do processo, de ter uma consciência correta da realidade. Sua consciência da realidade é invertida, por imposição da classe dominante. Como exemplo, poderíamos aduzir a seguinte pergunta: qual a causa de sua pobreza? Geralmente as pessoas não sabem identificar a verdadeira causa de sua situação, colocando-a onde ela não está: porque Deus não quis, ou, porque não gosto de trabalhar, ou, não sei administrar; quando sabemos que a causa, na maioria absoluta das vezes, está na sociedade exclusivista, competitiva, dominadora.
Mito e Mistificação: Mito aqui é tomado em sua concepção popular, isto é, como meio de levar a pessoa ao terreno do imaginário puro[16]. Mistificação vem de mistério; é tornar uma coisa misteriosa, inacessível ao comum dos mortais.. Tanto o mito quanto a mistificação produz a fuga dos verdadeiros problemas e de suas adequadas soluções. Exemplo de mito: riqueza, prazeres, conforto, como fatores únicos de felicidade; globalização, livre mercado como solução para os problemas humanos. Exemplo de mistificação: democracia[17] é regime político para os deuses e não para os homens, filosofia é só para os inteligentes. Falta de chuva é um mistério, logo, vamos rezar para chover, pois só Deus pode desvendar mistério.
Coisificação: A coisificação tem dois sentidos:
a - tratar o homem como coisa. Exemplo: Ronaldinho é Nike. Sua saúde não tem importância diante do prejuízo da Nike[18]
b - transformar o provisório em permanente. Exemplo: ”o mercado resolve tudo”; ou a corrupção nasceu com o Brasil, logo...
Inversão causa e efeito: Exemplo: “A preguiça causa a pobreza”. A psicosociologia mostra o contrário.
Supervalorização da teoria ou inversão da relação teoria/prática:
Numa visão praxeológica do mundo, a prática está impregnada de teoria. Ambas estão em pé de igualdade, tendo o mesmo valor.[19]
Pois bem, a ideologia, no afã de mascarar a realidade, coloca a teoria acima da prática. Se a teoria é a iluminadora da prática, como ensinara Kant, ela é mais importante do que a prática; sendo a prática mera aplicação da teoria – é o que insufla a ideologia. Exemplo: “dificilmente você encontra a estátua de um operário nas praças, em contraposição, de intelectuais, se encontram muitas”. A tese de que os EEUU receberam de Deus a missão de salvar o mundo é altamente ideológica.[20]
. Primeiramente, podemos dizer que ela favorece o diálogo. Por ser provisória, a ideologia permite um diálogo proveitoso “aqui e agora”, tendo em vista a prática imediata. Em que pese ser uma interpretação provisória da realidade, ela ajuda a entender a ação e nos induz, ou, pelo menos, sugere um engajamento nela. Neste sentido, a ideologia seria uma aposta, um risco, mas um risco necessário. Não se proceder assim, males piores poderiam advir.
É neste sentido que dizemos que Partido Político bom é aquele que é guiado por uma ideologia. Neste sentido, também, Gazuza pôde cantar: “Quero uma ideologia para viver”.
[1] O que faz a diferença entre a indução pré-científica e a científica é a quantificação ou matema-
tização das variáveis ou do conhecimento. Até aí, a matemática era usada somente como meio de
educação, dado que o homem, ser espacial que é, tem de se localizar no espaço. Como se vê, a
ciência antes da Renascensa se fazia de maneira filosófica.
[2] Rever o Cap anterior sobre este assunto.
[3] Há uma diferença entre instrumento técnico e tecnológico, o primeiro aumenta a força
física, o segundo, aumenta a precisão.
[4] Cientificismo é a crença infundada de que a ciência conhece tudo e, assim, é capaz de resolver todos os problemas. É uma espécie de magia, com poderio ilimitado sobre as coisas e os homens; um tipo de
Religião, ou seja, um conjunto doutrinário de verdades intemporais, inconcussas, inquestionáveis.
[5] Não estamos advogando que a filosofia perca a característica da subjetividade que é um dos marcos
de sua individualidade, mas que se diminua ou se elimine seu subjetivismo que é um vício
[6] Nos tempos primevos da humanidade, SOPHIA era a deusa do pensamento; a seu bel prazer, ela doava o pensamento ao ser humano quando este nascia e o recolhia na sua morte.
[7] Este sentido se enquadra no pensamento de Kant. A propósito do verbo decidir, podemos asseverar
o seguinte: quem não possui uma utopia, quem não tem na cabeça uma saída para a questão, quem
não é detentor de um modo fundamentado e coerente de fazer, ou seja, quem não é utópico, mas
“utopista”, não tem direito de criticar. Se a crítica só se contenta com seu lado negativo, sem apontar uma
saída, não passará de um fogo fátuo ou de um sino que retine e nada mais; ao lado de denunciar, ela
não tem direito de criticar, de denunciar, com ensina Paulo Freire.
75 Aqui se insere a posição da Escola de Frankfurt, para a qual, a crítica deve impedir que os seres
humanos se abandonem irrefletidamente às idéias e formas de conduta instituídas socialmente e
que as ações e fins do ser humano não devem ser produtos da necessidade (KOHAN, 2000 : 26).
Também aqui se identifica o pensamento de Michel Foucault, para quem a crítica ‘é tornar difíceis
coisas fáceis, é ‘desnaturalizar ‘ o mundo, a desbanalizar o quotidiano, torná-lo mais complexo,
menos óbvio. A crítica nos força ver o mundo como ‘se fosse a primeira vez’ (idem, idem)
[9] Neste terceiro sentido, situa-se o pensamento de Larrosa, para quem , a crítica é a abertura do espaço
ético ‘à inquietude, à sensibilidade, à atenção’, situando-se ‘fora das morais afirmativas, não qües-
tionando uma moral para sua troca por outra, não denunciando uma falsa moral e o “advenimento”
da moral verdadeira’; afinal a crítica é a ‘afirmação do valor da não-conformidade, da insatisfação,
da abertura’ (KOHAN, idem, p. 27).
[10]Na filosofia tradicional, afirmava-se que a verdade era adequação entre a mente e a realidade ex-
terna; nesse sentido, crítica pode ser oposição entre verdade e erro. No sentido atual de verdade,
não (consultar cap. 10).
78 A ideologia não dá o braço a torcer. Se ela se mostrasse defeituosa, ninguém a aceitaria. 79 Não é a toa que um gaiato afirmou que Deus criou o mundo em posição natural e o diabo veio e o colocou de cabeça para baixo.
86 Atenção: esta citação só tem sentido quando lida em toda sua integridade, sobretudo o que está em negrito.


[14] No terreno do fazer, a mentira se transforma em dolo – que é pensar uma coisa e fazer outra, com o
o fito de enganar.


[16] Na concepção histórico-filosófica, ver o cap. 03
[17] De fato democracia perfeita não existe. Toda democracia é um projeto que está em processo de
realização. Seu sucesso dependerá muito da educação do povo.
[18]Referência à Copa de Futebol da França em 2002, em que a Nike patrocinava a CBF e impôs a
participação de Ronaldo, o fenômeno, em condições de saúde adversa para o atleta.
[19] Em nosso livro, Dialética - A Terceira Via da Educação: De Heráclito a Paulo Freire,
cap.02, tratamos largamente deste assunto.

[20] Nem tudo é nefasto na ideologia, pelo menos na ideologia no sentido amplo. Primeiramente, podemos dizer que ela favorece o diálogo. Por ser provisória, a ideologia permite um diálogo proveitoso “aqui e agora”, tendo em vista a prática imediata. Em que pese ser uma interpretação provisória da realidade, ela ajuda a entender a ação e nos induz, ou, pelo menos, sugere um engajamento nela. Neste sentido, a ideologia seria uma aposta, um risco, mas um risco necessário. Não se proceder assim, males piores poderiam advir.É neste sentido que dizemos que Partido Político bom é aquele que é guiado por uma ideologia. Neste sentido, também, Gazuza pôde cantar: “Quero uma ideologia para viver”.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Temática do livro INTRODUÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA ÀS FILOSOFIAS ACRÍTICAS: ESSENCIALISMO E EXISTENCIALISMO - DE SÓCRATES A HEIDEGGER

TEMÁTICA DO LIVRO
Nosso ensaio poderia denominar-se “Criticidade – Marca Chamejante da Filosofia Dialética: Rejeição ao Esencialismo e ao Existencialismo”. Apesar de sua reduzida extensão, será ele dimensionado em duas partes. Na primeira - uma metafilosofia, uma prófilosofia ou uma protofilosofia- queremos sobretudo mostrar a importância e a necessidade da filosofia, ressaltando suas características e suas diferenças com a ideologia e com a ciência. Ainda nesta primeira parte, tentaremos evidenciar as imbricações entre filosofia e educação - uma semelhança fraterna, quase siamesa entre as duas, a ponto de não se poder falar de uma sem se falar da outra. Chamarei a esta parte, de metafilosofia ou proto-filosofia, ou seja: acesso à filosofia pelos flancos. Na segunda parte, entramos na filosofia propriamente dita, procedendo a uma crítica ao que se produziu, de Sócrates a Heidegger. São as filosofias que, não levando em consideração, todas as dimensões do ser humano - sobretudo a dimensão do presente - não contemplam sua concretude existencial e, por isto, são filosofias pouco afeitas à criticidade, não passando, geralmente, de meras ideologias. Assim, demonstram-se pouco úteis, quando não perniciosas. Realçamos, por sua beleza, as filosofias existencialistas que têm, como método, a Fenomenologi, mas contra elas, temos o fato de considerá-las alheias à problemática do ser humano, deixam de lado, com raríssimas exceções, quase dois bilhões de seres humanos que vegetam numa qualidade de vida de alta precariedade. Tais filosofias são, também no fundo, verdadeiras ideologias a serviço da elite dominante e abastada. Toda essa crítica a fazemos sob a luz penetrante da filosofia dialética, exposta no último capítulo. Filosofia esta que, por sua estrutura de tese, antítese e síntese, se tornou, na atualização de Marx, Antonio Gramsci, Vieira Pinto e Paul Freire e outros, a filosofia mais autenticamente crítica que se pôde elaborar até o presente momento

quinta-feira, 30 de julho de 2009

INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA ÀS FILOSOFIAS ACRÍTICAS: - ESSENCIALISMO E EXISTENCIALISMO - DE SÓCRATES A HEIDEGGER




INTRODUÇÃO HISTÓRICO-CRÍTICA ÀS FILOSOFIAS ACRÍTICAS: ESSENCIALISMO E EXISTENCIALISMO - DE SÓCRATES A HEIDEGGER


INTRODUÇÃO ¹

Fazer que os homens se sintam inconformados,
eis minha missão -
Nietzsche

Especialista pela PUC de Minas Gerais em História Moderna e Contemporânea e em História e Filosofia da Educação, professor titular de Filosofia Geral e Filosofia da Educação há 34 anos na AEUDF (hoje, UNICSUL), venho apresentar aos meus alunos e a quantos se interessam pela reflexão filosófica este ensaio de introdução crítica ao que há de ingenuidade nas filosofias essencialistas e existencialistas. A nosso juízo, filosofia que não é crítica acaba se tornando insossa, já que a crítica é o sal da filosofia.
Temos plena convicção da necessidade da filosofia para a solução dos graves problemas que assolam a humanidade. Entretanto, não se trata de qualquer filosofia. Há umas que não apresentam uma imagem autêntica do ser humano; por isso não contribuem para seu processo de hominização.[3] Tais filosofias devem, ao menos em parte, ser depuradas, ou até rejeitas. Mesmo o Pragmatismo e o Existencialismo devem ser revistos em alguns aspectos, principalmente, no que se refere a seu acriticismo diante da situação, escandalosamente, precária de mais de dois bilhões de homens e mulheres, vegetando nas raias da miserabilidade.
A nosso ver, é mau procedimento didático levar os iniciantes a um encontro frontal com os grandes temas da filosofia, sem passarem primeiro por um processo de adaptação. Julgo inoperante tal processo, sem se começar por uma meta-filosofia ou uma proto-filosofia: seja, um acessamento da filosofia pelas bordas – o que é, por outra, realizar o objetivo primário da filosofia que é pensar-se a si mesma

INTRODUÇÃO²

Iniciemos com as seguintes assertivas que, mesmo não sendo todas intuídas por nós, recebem, entretanto, nossa cooptação.
1 - A filosofia faz parte do constitutivo do ser humano. Sem filosofia, o serhumano retroage ao nível dos brutos; 2 - A filosofia tem, no fundo da humanidade, a inconfundível e silenciosa missão de ligar indivíduos e gerações através dos séculos. Sua grande arma é o diálogo informado pelo vigor e pela coerência das idéias, diálogo insubstituível para a convivência e plenificação holística da humanidade; 3 - A filosofia é como o ar que respiramos. Está sempre presente em todos os instantes de nossa vida. É qual mãe extremosa que está sempre à nossa escuta.Quem vive possui uma filosofia de vida, uma concepção de mundo, mesmo que inconscientemente. Todos são detentores de uma filosofia, mesmo que seja em sentido lato. Esta filosofia permeia as camadas inconscientes da psique. De lá, ela dá as coordenadas, comanda o ser humano, orienta seus passos e direciona sua vida. Dela somos todos tributários; 4 - É engano altamente prejudicial achar-se que a filosofia é pura abstração, que ela cai do céu, que filósofo é aquele que anda na estratosfera, à margem dos trilhos da história; 5 - No plano imediato, a filosofia não tem comprometimento com nenhuma aplicação prática, com interesses imediatos, mas a longo prazo, não podemos olvidar que ela é o único seguimento do saber humano capaz de resolver os graves problemas da humanidade; 6 – A totalidade é a característica fundante da filosofia, sendo o portal de entrada para toda visão de conjunto da realidade, sem o que, qualquer diálogo se torna improfícuo ou mesmo impossível; 7 – A filosofia vive de perguntas. Perguntar é o que de melhor ela sabe fazer. É perguntando que o ser humano adquire autoestima e se explicita como pessoa; 8 - A filosofia é o reduto dos inconformados. Ela tem a convicção de que, para se plantar algo não peremptamente útil para a hominização da humanidade no ser humano, é necessário destruir, realizando a vocação do profeta Jeremias: “Eis que te envio para arrancares, destruíres e plantares” (Bíblia Sagrada).


CAPÍTULO 01

A vocação da filosofia é iconoclasta – a quebra de ídolos (Rubem Alves)

PRESENÇA, IMPORTÂNCIA E UTILIDADE DA FILOSOFIA
Presença da filosofia no mundo

Afirmações de Karl Jaspers [4], Eduardo Prado de Mendonça e Carlos Luckesi :
A filosofia está sempre presente. Não pode lutar para se impor, não pode demonstrar-se, mas pode comunicar-se. Não opõe resistência quando é repudiada, não triunfa quando é atendida. Vive equânime no fundo da humanidade, permitindo que todos se liguem com todos. Há dois milênios e meio que se elabora no Ocidente, na Índia e na China, uma filosofia sistemática e de estruturas altamente complexas. Uma grande tradição apela para nós (Jaspers, 1996: 15).
...as idéias não estão apartadas da vida, mas estão na existência como o eixo em torno de que o mundo efetivamente gira”... “os filósofos que julgamos distantes de nós vivem conosco, ao nosso lado e até em nós mesmos, presentes em nossos pensamentos. Nós os conduzimos conosco, sem o saber... “As doutrinas dos filósofos já não vivem nas academias: elas estão nas ruas. Nós as adquirimos sem o saber. Nós as adquirimos num sistema singularíssimo de crediário[5]: nem sabemos como as adquirimos e nunca sabemos por quanto tempo nem quanto pagaremos por elas.” “Assim como a atmosfera em que vivemos está povoada de seres invisíveis, que aspiramos em nossa respiração sem o saber, a atmosfera de nossa vida de pensamentos está povoada de idéias de filósofos, que fazemos circular sem ter a menor consciência disso. No mais das vezes, o que julgamos ser manifestação espontânea de nosso pensamento, ou expressão do senso comum exprime na verdade resíduos de idéias que se tornaram populares, e... se desligaram do seu contexto e de suas origens” (MENDONÇA, 1996 : 9,10,15,47) ...consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente, quem vive possui uma filosofia de vida, uma concepção de mundo. Esta concepção pode não ser manifesta. Certamente ela se aninha nas estruturas inconscientes da mente. De lá ela comanda, dirige-lhe os passos, norteia a vida. A vida concreta de todo homem é, assim, filosofia. O campônio, o operário, o técnico, o artista, o jovem, o velho, vivem todos de uma concepção de mundo. Agem e se comportam de acordo com uma significação inconsciente que emprestam à vida. Neste sentido, pois, pode-se dizer que todo homem é filósofo no sentido usual da expressão.”(LUCKESI, 1992 : 24)
As citações de de Jaspers, Eduardo P. de Mendonça e Luckesi têm praticamente o mesmo sentido: A Filosofia é como o ar que respiramos, acompanha-nos por toda parte, mesmo que não nos apercebamos disto. Nada escapa a seu afago meigo e universal. É qual mãe bondosa que, mesmo repudiada por filhos desalmados, está sempre presente, para ajudar. Vamos repetir o que já foi dito, quem age, age dentro de uma concepção de mundo, dentro de uma filosofia. Somos todos tributários da Filosofia. No fundo de toda fala e de toda ação, ela está presente. É como os artistas de fantoche, manobrando invisível os cordéis das marionetes. A Filosofia não é arrogante. Não se impõe a ninguém. A História nos atesta que forças poderosas sempre se levantaram contra ela, sacrificando, com freqüência, no altar da ira seus principais representantes (desde Sócrates, passando por Jordano Bruno, Vieira Pinto, Paulo Freire) Leôncio Basbaum, in Luckesi, 1992: 23: “ a filosofia não é de modo algum uma abstração independente da vida. Ela é, ao contrário, a própria manifestação da vida humana... A filosofia traduz o sentir, o pensar e o agir do homem.”. Na p. 315 de sua obra Sociologia do Materialismo, o mesmo autor é mais explícito: “A Filosofia é a concretização de um espírito ou de uma idéia que surge como conseqüência de uma época” A Filosofia é filha da História. Tal a história, tal a filosofia. Por isso, razão teve alguém, quando disse: “Filósofo é aquele que anda com o pé no pó, o coração nos espinhos, ainda que a mente vagueie pelo mundo da abstração” Nicola Abbagnano assevera em Introdução ao Existencialismo: “Há um sentido - e um sentido bastante antigo - em que a filosofia se identifica com a própria existência do homem e em que, como queria Platão - não se pode ser homem sem ser filósofo” . É que o ser humano é multidimensional, multifacetado. É uma soma de qualidades essenciais, e entre suas inúmeras dimensões, suas inúmeras facetas, não pode faltar as da filosofia (mesmo que seja a filosofia no sentido lato, como será explicado em seguida). Antonio Gramsci7 (1891-1937) revolucionou a Filosofia ao afirmar que “todos homens são filósofos” e que “o ser não pode ser separado do pensar” (GRAMSCI, 1995ª : 11 e 70). Até então, a Filosofia era obra de elite. Só os bem nascidos é que se dedicavam a ela. Antes de Gramsci, achava-se que filosofia era uma dádiva dos deuses, encastelada no mundo das .academias, longe do povo. Não é assim. Todos, com um mínimo de sanidade mental, são detentores de uma filosofia, pelo menos no sentido lato, como veremos logo abaixo. Valemo-nos, mais uma vez, das assertivas de Mendonça, p. 15: Inspirado na crítica de Marx ao Idealismo na 11 ª contra Feuerbach em que ele escreveu: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras, mas o que importa é transformá-lo”. Gramisci afirma o compromisso da Filosofia com a vida quotidiana. Ele nega que a Filosofia seja exercida só pela elite, sendo ela obra de todos os humanos. Para demonstrar esta afirmativa, Gramsci argumenta: a Filosofia está presente na linguagem, no senso comum/bom senso, na arte e na religião, visto que, em todo esse conjunto, “há uma concepção de mundo que o sustenta” Entenda-se: todos os seres humanos são filósofos, embora nem todos possuem condições teórico-práticas suficientes para elaborar sua visão de mundo, sua filosofia. Todos os seres humanos são filósofos, mas, observe-se, poucos são os que se dão conta de que o são. Agem como filósofos sem o saber, pois a filosofia está entranhada nas estruturas inconscientes da mente humana. Como afirmam os pensadores (Platão, Abbagnano, Walter Kohan e muitos outros), a filosofia faz parte do constitutivo da natureza humana. Sem filosofia, o homem retroage ao nível do mero animal.
Podemos reafirmar, portanto, que a filosofia continua, no fundo da humanidade, sua humilde e silenciosa missão de ligar indivíduos e gerações através dos séculos. Sua grande arma é o diálogo informado pelo vigor e pela coerência das idéias, diálogo indispensável para a convivência e plenitudificação da humanidade.
Ainda quanto à presença da Filosofia no senso comum/bom senso, afirmamos com Gramsci: muito embora sejam limitadas suas consciências, os integrantes das classes subalternas agem, transformando o mundo com seu trabalho, o que exige um mínimo de conhecimento. É o núcleo sadio do bom senso que, desenvolvido, é capaz de chegar a uma nova visão de mundo, mais crítica, mais consistente. Esta nova visão de mundo leva à crítica da própria concepção de mundo, buscando a consciência daquilo que somos realmente, realizando em nós o “conhece-te a ti mesmo” socrático[6]
. A oposição à filosofia assumiu e assume, ainda hoje, características ou modalidades diversas. Podem continuar a servir-lhe uma taça de veneno ou a acender-lhe as chamas de uma fogueira... A mofa, o desprezo ou, até, o silêncio constituem, em outras épocas, a tônica do repúdio. Cantam-lhe, então, um réquiem, reconhecendo-lhe os méritos do passado, declarando-a, contudo, inútil na atualidade e completamente extinta, num futuro bem próximo (Conf. Revista do SIMPRO, Ano 1, n. 1, p. 45).
ImportânciadaFilosofia É engano, altamente prejudicial, achar-se que a Filosofia é pura abstração, que ela cai do céu, que filósofo é aquele que anda na estratosfera, à margem dos trilhos da história. Mendonça (1996: 20) cita Whitehead:
Os filósofos postos em ridículo pelo povo, vivendo entre seus pensamentos inofensivos, é na realidade uma potência terrífica. Seu pensamento tem efeito de dinamite. Ele segue seu caminho, ganha homem por homem e toca as massas. Chega o momento em que triunfa de todos os obstáculos e regula a marcha da humanidade - ou estende um lençol sobre suas ruínas. Eis por que os que desejam saber em que direção está a rota, fazem melhor prestar atenção não aos políticos, mas aos filósofos: o que os filósofos anunciam hoje será a crença do amanhã.
Ainda mais, a Filosofia traduz o sentir, o pensar e o agir da história. É a interpretação e a concretização do sentido e do espírito de uma época. Sem Filosofia, a História não passaria de um amontoado de fatos, perdendo sua condição de mestra da vida, para lembrar a afirmação de Cícero.
As idéias seguintes são compiladas de Ewing[7]. Em seu livro, As Questões fundamentais da Filosofia 1984: 13-16). Ewing começa citando Whitead que, segundo ele, é um dos mais acatados pensadores modernos. Este descreve os dons da Filosofia com sua capacidade de ver e prever, aliada ao valor da vida, ou seja, o aporte de subsídios que sustentam todo o esforço civilizado. Literalmente, Whithead diz o seguinte: “quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma filosofia, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços”. Segundo Ewing, a História está impregnada de acontecimentos induzidos pela filosofia. A título de exemplo, relacionemos os seguintes: 1) a concepção mecanicista do universo[8],.teorizada por Nwton, tem muito a ver com as idéias de Descartes, sobretudo com sua tese sobre a mecanicidade do corpo humano[9]; 2) a teoria da Relatividade e da Física Quântica têm muita ligação com as coordenadas na projeção de Heráclito, Jordano Bruno, Hegel, entre outros; 3) a Constituição dos Estados Unidos é uma aplicação quase literal das idéias de John Locke; 4) as idéias de Rousseau foram decisivas para a Revolução Francesa.
Reforço a convicção de que a Filosofia é muito importante visto estar ela umbilicalmente atrelada à vida; assim podemos dizer que: filósofo é aquele que anda com o pé no pó, o coração nos espinhos, ainda que a mente vagueie pelo espaço. Dito de outra forma: filósofo é aquele que parte da realidade vivida, eleva-se, pelo método da abstração, ao mundo das idéias, e volta depois a esta mesma realidade vivida para confirmá-la e transformá-la. Pode haver algo mais importante do que isto?
Enfim, a Filosofia “é uma necessidade natural do ser humano, pois ninguém pode agir no escuro, sem saber para onde vai e porque vai”.
Utilidade da Filosofia A propósito da afirmação de que “todo homem é filósofo”, vamos apontar a seguinte distinção. Existe uma filosofia no sentido lato, geral, genérico, usual. Esta filosofia consiste na visão de mundo que norteia a ação do homem, desde os primeiros sinais de seu amadurecimento psico-epistemológico até sua morte. Existe, porém, outra filosofia no sentido estrito, específico, propriamente dito. Filosofia no sentido” científico”. É a esta Filosofia que se refere Jaspers no texto que dá início a estas considerações preliminares. É desta Filosofia que vamos tratar neste Curso.
Observe-se que a filosofia, no sentido lato, é mais importante que a Filosofia no sentido estrito. Entretanto, sem a segunda, aquela se pode perder em um mundo cada vez mais pulverizado em tendências, determinações e ideologias.
Antes de entrar na discussão deste item, desejo colocar o leitor em contato com o constructo “congruência”, criado ou usado exaustivamente por Carl Rogers (1988).
Para este psicólogo norte-americano, a finalidade da educação (ou da Filosofia, sem a qual nenhuma educação é possível), congruência é a qualidade da pessoa que está de bem (sintonizado) consigo mesmo, com o outro e com Deus.
Nota-se que estar de bem consigo mesmo é condição prévia para que se venha estar de bem com o outro e com Deus.
Veremos que ser congruente, estar de bem consigo mesmo, sintonizado consigo mesmo é a finalidade suprema da Filosofia.
A filosofia é mesmo útil?
O termo “útil” procede do verbo latino “utor, uti”, que quer dizer usar, gozar de. Usar de determinadas faculdades e bens, para satisfazer às necessidades. A um seguimento de necessidades, corresponde uma faculdade. O homem tem muitas necessidades e, por isso, tem muitas faculdades.
Desde Aristóteles, sabemos que o ser humano é dotado destas faculdades (potencialidades). Umas são externas (os sentidos externos), outras são internas (inteligência, vontade, memória, fantasia, imaginação, afetividade, senso comum, ecológico, senso lúdico, estético, religioso, senso de curiosidade).
Às faculdades externas, correspondem as necessidade externas, como: alimentação, vestuário, moradia, saneamento básico, prevenção e cura das doenças, propagação da espécie; afinal, tudo aquilo que serve de suporte à vida vegetativa (simplesmente biológica).
Entretanto, dado que o homem não é um simples animal, a plenitude de sua vida não se restringe à reprodução desta vida vegetativa. Tal reprodução é meio, e não fim da vida humana. Reduzir-se a ação humana somente à produção dos recursos necessários à defesa da vida vegetativa é algo frustrante, sendo talvez um dos fatores preponderantes da angústia de nosso século, desencadeadora de tanta violência.
Tal raciocínio leva-nos a concluir que, além da satisfação das necessidades externas (correspondentes às faculdades externas), temos também de satisfazer às necessidades internas (correspondentes às faculdades internas).
Voltando ao termo “útil”, dizemos que temos o “útil” externo, prático (a poiésis dos gregos), voltado para a satisfação da vida vegetativa, material, e temos o “útil” interno, para a satisfação da vida espiritual que tem tudo a ver com a congruência de que se falou.
Expondo de outro modo: entendemos por “útil externo“ tudo aquilo que tem um fim em outro, e não em si mesmo. Por exemplo, uma faca é útil, porque seu fim é cortar; uma caneta é útil, porque seu fim é escrever. Ninguém fará de uma faca ou de uma caneta um objeto estético, isto é, apenas para ser contemplado.
Pelo conceito de “útil externo”, estamos vendo que ele não pode ser considerado como critério por excelência para julgamento dos valores, pois o “útil externo” não tem valor em si mesmo (a não ser para proteção da vida vegetativa), mas só tem valor por aquilo a que serve. O “útil externo” é sempre instrumento, sempre meio, é intermediário, e só vale por aquilo a que se dirige: não vale por si. Não leva àquela congruência mencionada (e que é a finalidade da vida e da e Filosofia). Seu valor é, portanto, dependente e subordinado, pois “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”.
O conceito de “útil interno”, por sua vez, significa aquilo que tem um fim em si mesmo, colocando-nos diante do aspecto plenitudificativo da vida humana (a congruência). Os atos externos são aqueles que estão dirigidos a um fim externo (a manutenção da vida externa, palpável, quantificável, biológica). Os atos internos são aqueles que estão dirigidos a um fim em si mesmo, definem a vida humana na ordem da perfeição ontológica, pessoal (que leva á congruência), perfeição que é: lúdica, estética, especulativa, amorosa, afetiva, sentimental, ética, moral, ecológica, sacral, religiosa, imanente, livre, cinestésica, etc.
O homem tem necessidade de tudo isto, para seu equilíbrio psíquico (para ser congruente) e até orgânico. Ora, esta forma de existir (desligada do “útil externo”) tem um fim em si mesmo. Ela se cumpre na própria medida em que ela se realiza no próprio indivíduo. “Não tem um fim extrínseco a ele, mas se efetua nele, como um modo de ser fundamentalmente saudável”(MENDONÇA, 1996 : 134).
Vamos insistir, o “útil externo”, prático dirige-se à realização exterior, aos atos que dão suporte à sua vida externa, material, vegetativa; enquanto isto, o “útil interno” dirige-se à perspectiva ontológica, existencial, pessoal do ser humano.
Exemplificando: ouvir uma música é ouvir uma música: não tem finalidade externa. É uma vivência indizível, pois se efetua na experiência criativa, que é um estado de existência, um modo de ser diante do belo contemplado na natureza, que molda em seu ser algo de novo e que produz congruência. De certa maneira, somos como que possuídos pela obra de arte.
Outro exemplo: a vida moral. Esta se passa numa esfera alheia ao âmbito do “útil externo”. O bem moral[10] é útil não externamente, mas internamente, pois é perfeição, uma realização harmoniosa, congruente, que deixa a pessoa em paz consigo mesmo. Quantas vezes ouvimos: “tenho a consciência de dever cumprido”.
A Filosofia se inscreve não como “útil externo”, mas como “útil interno”.
“A Filosofia procura alcançar um tipo de saber desinteressado... que não está comprometido com nenhuma aplicação prática imediata. É verdade que o homem tem o direito de conhecer para atender para a solução das dificuldades de ordem prática que surgem em sua vida; mas não é só isto, pois ele se engrandece na medida em que se dispõe á investigação das explicações mais profundas, movido pelo desejo de encontrar uma resposta que satisfaça a sua disposição inata de perguntar. Apenas esta satisfação de compreender, apenas esta alegria interior, que parece fazer com que se estabeleça no indivíduo a conciliação dele com ele mesmo, pois na medida em que ele conhece a natureza das coisas e o sentido da existência, uma nova harmonia parece brotar no interior do próprio ser. Neste sentido, ele se reconcilia consigo mesmo, ele se sente poder apoiar-se em si mesmo, ele passa a dialogar com o mundo, porque, então, não é apenas um instrumento ou uma engrenagem da máquina da natureza, mas é um ser, um ser ciente e consciente, um ser no mundo, um ser diante do mundo, um ser capaz de testemunhar e contemplar a existência do mundo. Se ele procura levar a ordem de suas investigações até às últimas barreiras do que é possível conhecer, não é pensando em qualquer vantagem ou finalidade externa: procura apenas responder ao questionário que se impõe por sua curiosidade intelectual, e por seu sentimento moral, que o move no sentido de alcançar uma estabilidade intelectual e emocional capazes de dar-lhe a firmeza do ânimo e a precisão da conduta...” (MENDONÇA, 1996 : 128-129).
Tudo isto que Mendonça escreveu é claro, no plano dos interesses imediatos, mas não podemos olvidar que, a longo prazo, a Filosofia é o único seguimento do saber humano capaz de resolver os grandes problemas da humanidade.
A Filosofia é mesmo útil?
Como já se afirmou, e não se deve cansar de repetir, a Filosofia está na ordem do “útil interno”. Ela representa o evoluir da inteligência na perfeição de si mesma. Não estando comprometida com a ordem dos interesses práticos, externos, imediatos, ela está credenciada a conhecer, de maneira mais completa e verdadeira, pois sua investigação visa a atingir o conhecimento exaustivo do real, para satisfazer apenas a curiosidade humana de saber.
Certa, vez alguém perguntou a Aristóteles para que serve a Filosofia. Ele respondeu de imediato: para nada. Depois ele argumentou que a Filosofia não serve para nada, porque ela não é serva, é rainha. Aristóteles quis dizer que a Filosofia não tem finalidade prática. Entretanto não devemos levar muito a sério esta inexistência da finalidade prática da Filosofia. Ao que já foi colocado nas páginas anteriores, acrescentemos outras explanações de Ewing, p. 16:
... De modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e aparentemente destituído de utilidade prática terminam por exercer profunda influência sobre a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância, a ética e a religião que adotamos. Pois as diferentes partes da Filosofia, os diferentes elementos que compõe nossa visão de mundo, deveriam integra-se... Sendo assim, conceitos, à primeira vista, muito distanciados de qualquer interesse de ordem prática, podem vir a afetar, de modo vital, outros conceitos que envolvem mais de perto a vida diária.

A Filosofia merece ser valorizada por si mesma
Podemos compreender, agora, por que a Filosofia não precisa recear de ter ou não ter valor prático. Devo, ao mesmo tempo, dizer que não aprovo, de modo algum, uma concepção puramente pragmática da Filosofia[11]. A Filosofia merece ser valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de ordem prática. E a melhor maneira de assegurarmos seus efeitos práticos é nos dedicarmos à Filosofia pela Filosofia. Para encontrarmos a verdade, precisamos buscá-la desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil do ponto de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus efeitos práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito menos podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As crenças são úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são úteis (Ewing, !984 : 16)
A Filosofia é mesmo útil? Vamos concluir com o repto de Marilena Chauí, uma das maiores expressões da cultura brasileira no campo da Filosofia:
Qual seria, então, a utilidade da Filosofia? Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes (CHAUÍ, p.
18).
CAPÍTULO 02

A filosofia é o reduto dos inconformados. Ela tem a convicção de que, para se plantar algo definitivamente útil para a humanidade, é necessário destruir (Geraldo)
NECESSIDADE DA FILOSOFIA
Sobre a importância e necessidade de filosofia, cabem as seguintes reflexões: vivemos em um mundo de necessidades. Temos necessidades substanciais e necessidades acidentais. Ao nível da substância, necessário é aquilo que não pode deixar de existir. O que pode deixar de existir é acidental, é supérfluo. Para o ser humano é absolutamente necessário que haja não somente comida, vestuário, educação, saúde, lazer, cultura, amor, mas também que se tenha capacidade e oportunidade de filosofar que, como vimos, é um bem interno, sem finalidade prática. Viveria em estado subumano quem vivesse sem se alimentar, sem se vestir, sem morar, sem amar, trabalhar, praticar lazer ... pensar ... filosofar. Isto é, sem suprir as necessidades fundamentais. A vida só tem sentido numa situação de condições mínimas para ser vivida. E a filosofia faz parte dessas condições mínimas. A fome do espírito é tão grave quanto a fome do corpo, na afirmação do Papa Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio. Um povo sem filosofia seria um povo muito pobre, muito necessitado, incapaz de assumir-se, de auto-afirmar-se. 1 -A Filosofia é necessária para cimentar a cultura de um povo, protegendo-o melhor do que as armas mais sofisticadas da indústria bélica. “Silenciam-se os filósofos, e um novo perigo, nos ronda”![12]
Já se tornou lugar comum escrever ou falar que o Brasil não possui uma Filosofia, ainda que tenhamos bons filósofos. Lamentavelmente, ao lado dos desbravadores de nossos sertões, ao lado dos extraordinários demarcadores de nossas fronteiras não perfilou igualmente um grupo compacto de pensadores a delimitar as fronteiras de nosso pensamento. Daí a instabilidade de nossa religião, de nossa educação, de nossa economia, de nossa política, afinal, de nossa cultura. O grande perigo do Brasil não se assinala por seu imenso costado aberto aos predadores internacionais, mas pelo fato de sermos um campo minado de culturas estranhas, com seus flancos escancarados aos “demônios que descem do norte”, para lembrar o título e a temática do livro do jornalista Delcio Monteiro de Lima. Se não tomarmos tento, essas minas que infestam nosso espaço cultural podem entrar em cadeia de explosão e, neste sorvedouro não vislumbrado pelo povo, lá se pode ir de roldão nossa nacionalidade, vale dizer, nossa pátria.
Infelizmente, as armas que podem nos proteger contra os inimigos visíveis, não nos protegem, entretanto, contra os invisíveis. É que os inimigos invisíveis, as ideologias, a violência psicológica só poderão ser detidos pela força das idéias, pelas armas da Filosofia. Na história, temos muitas ocorrências, sustentando esta afirmação. Entre outras, vamos lembrar o exemplo da Grécia. Este país, no século terceiro antes de Cristo, foi vencido pelos romanos. Entretanto, os romanos é que foram vencidos pela cultura grega. Escravos gregos se tornaram mestres em Roma. Tal a força da cultura grega, firmada no embate das grandes idéias[13]
2. A Filosofia é necessária para descobrir e compreender sentido do mundo e do homem, e o lugar que o homem ocupa nele.
Segundo a tradição grega, sobretudo aristotélica, a finalidade da filosofia era buscar as causas últimas e finais da realidade. Hoje, com a descoberta do método científico, começou-se a ver que esta linguagem já está ultrapassada, a menos que se dê outra interpretação para a palavra “causa” “que, no contexto atual, passa a significar: valor, sentido, interpretação. Buscar “as causas” quer dizer, hoje, procurar o sentido cada vez mais largo e profundo do universo, tendo em vista o destino do homem e o lugar que ele deve ocupar neste universo. Este mundo, com suas incertezas, perplexidades e conflitos, obriga-nos a tomar uma atitude - que não vai acontecer corretamente sem a ajuda indispensável da filosofia. “É exatamente porque temos dúvidas e incertezas é que temos necessidade uma filosofia”. (TEIXEIRA, p. 146) O homem se realiza tanto mais, quanto melhor compreender sua realidade.
Para reforçar estas afirmativas, vamos recorrer a autoridade de Antonio Joaquim Severino, em Filosofia, p. 24/25:
O homem não é um fato
Na realidade, a compreensão filosófica da realidade é um fim em si mesmo, na exata medida em que a existência humana, como um todo, é sua meta! Todo o esforço da consciência filosófica na busca do sentido das coisas tem, na verdade, a finalidade de compreender, de maneira integrada, o próprio sentido da existência do homem! Temos, então, de fato, uma nova pragmaticidade: o homem não consegue viver e existir apenas como um fato bruto, ele sente a necessidade inevitável de compreender sua própria existência.[14] Portanto, o esforço despendido pela consciência, no seu refletir filosófico, não é só mero diletantismo intelectual, nem puro desvario ideológico, nem tentativa de representação do mundo para fins pragmáticos. É antes a busca insistente do significado mais profundo da sua existência, sem dúvida alguma, para tomá-la mais adequada a si mesmo.
A especificidade do ser humano
“... Na realidade, o espírito humano está buscando insistentemente compreender a especificidade da existência do homem, com o objetivo de torná-la cada vez mais plena. Até porque essa compreensão da própria existência ajudará os homens a darem sentido mais coerente ao conjunto de suas outras atividades.
...Por enquanto, podemos reafirmar que a forma filosófica de conhecimento apresenta-se como a busca ilimitada de mais sentido, de mais significação. Transforma-se, então, a filosofia num esforço do espírito humano com vistas a dar conta da significação de todos os aspectos da realidade, com a maior profundidade possível e sempre em relação à significação da existência do homem. É a tentativa de compreender o sentido mais radical de todas as coisas, independentemente da sua utilização imediata. Esse sentido é o modo pelo qual as coisas se apresentam ao “espírito”, modo peculiarmente humano de a consciência se apropriar delas.
A vida humana é a meta suprema da Filosofia. Inquirindo o que é, o como é e o por que é das coisas e dos homens, o que a filosofia pretende é a compreensão, de maneira integrada, do sentido da existência humana. Com este procedimento, a Filosofia nada mais está fazendo do que dar uma resposta ao que a psicologia chama de “instinto de cogitação do sentido da vida e do mundo. A Filosofia não é, pois, passatempo de desocupados, um refúgio de ideologias desvairadas ou o passaporte imediato de ações pragmáticas. Com ela, o homem passa a perceber-se não um objeto entre outros, mas a própria consciência e a própria voz de si mesmo e do universo. Não carece lembrar que, faltando esta consciência da totalidade de si mesmo e do universo, a ação do homem será dispersiva e ineficiente.
3. A Filosofia é necessária para se criticar a realidade
No capítulo quarto trataremos mais detidamente da relação entre filosofia e crítica. Aqui só vamos lembrar que a filosofia é necessária para se aclarar o todo confuso do mundo social, para se denunciarem as alienações escravizantes. Para isso, nada melhor do que perguntar e isto a filosofia faz muito bem. A filosofia leva a sério o que Sócrates dissera: “...uma vida sem perguntas não merece ser vivida...”, a filosofia vive de perguntas, é o que tem de melhor para mostrar” (KOHAN, 2000ª : 28).
Perguntar como processo de hominização[15]
O homem se engrandece na medida em que se dispõe à investigação das explicações mais profundas , movido pelo desejo de encontrar uma resposta que satisfaça à disposição inata de perguntar. Apenas esta satisfação de compreender, apenas a alegria interior, que parece fazer com que se estabeleça no indivíduo a conciliação dele com ele mesmo, pois na medida em que ele conhece a natureza das coisas e o sentido da existência, uma nova harmonia parece brotar no interior de seu próprio ser. Neste sentido, ele se reconcilia consigo mesmo, ele sente poder apoiar-se em si mesmo, ele passa a dialogar com o mundo, porque, então, não é apenas um instrumento ou uma engrenagem da máquina da natureza, mas é um ser, um ser ciente e consciente, um ser no mundo, um ser diante do mundo, um ser capaz de testemunhar e contemplar a existência do mundo. Se ele procura a ordem de suas investigações até às últimas barreiras do que é possível conhecer, não é pensando em qualquer vantagem ou finalidade externa: procura apenas responder ao questionário que se impõe por sua curiosidade intelectual... (MENDONÇA, 1986 : 128-129).
A filosofia é necessária para que não se continue a comer gato por lebre ou a misturar alho com bugalho. É necessária para “desbanalizar o banal”, na expressão de Ghirardelli.
A filosofia é o único conhecimento que nos leva a questionar a realidade presente (comumente injusta e desumana), a questionar os pressupostos de nossa visão de mundo, de nosso conhecimento familiar de que lançamos mão para explicar nossas práticas cotidianas.
Para aprofundar este item, muito nos ajudarão os textos seguintes: Comecemos com a seguinte passagem do livro Filosofia para crianças, de Walter Kohan[16] sobre o método do Prof. Matthew Lipman.[17]
Um dos motivos mais fortes de se trabalhar filosofia com as crianças é o poder que a filosofia tem de formar pessoas críticas. É precioso que Lipman, à maneira de Sócrates, venha considerar
...que a prática da filosofia é substancialmente educativa, na medida em que contribui para formar espíritos críticos, pessoas dispostas a deixar de ter certezas sobre seus saberes e a se colocar atentas para questionar os valores e as idéias que formam suas vidas e as vidas de seus semelhantes. Para os dois, uma verdadeira educação não pode deixar de ser filosófica e uma verdadeira filosofia não pode deixar de ser educativa (KOHAN, 2000 : 22).
“A filosofia pode fazer de cada estudante um espírito crítico e razoável, e isso, considera Lipman, nenhuma outra disciplina está em condições de proporcionar” (KOHAN, 200 : 51), pois, como já foi lembrado, perguntar é o que melhor a filosofia sabe fazer: “a filosofia pergunta, desconstrói o aparente e o falso, pergunta, cuida de si e dos outros, pergunta, resiste á ordem instituída, pergunta, outra vez pergunta, sempre pergunta” (Idem, p. 20).
Perguntando, o ser humano se desabrocha, desvela-se como pessoa [18]– o vocábulo pessoa vem do verbo latino personare que quer dizer soar. Pessoa emite som, e este som deve ser ouvido. A Filosofia é uma atividade que se dedica a questionar os cenários, as estruturas categoriais, os preconceitos comumente aceitos, sem exame. Na Filosofia o que se busca é questionar o conhecimento familiar de que lançamos mão, para explicar nossas práticas cotidianas.
Não é necessário dizer que quem quer que se dedique a fazer a crítica dos fundamentos do mundo familiar está metido numa atividade que produz ansiedade. Não foi por acidente que Sócrates teve de beber cicuta”. “Fazer com que os homens se sintam inconformados, eis a minha tarefa”, afirmava Nietzsche. A Filosofia não é edificante, reconfortante ou sacralizante. Sua vocação é iconoclasta[19] - a quebra de ídolos”. (ALVES, 1982ª : 74-8 passim). Por sua vez, Ghirardelli afirma que o filósofo, antes de tudo, é um pensador que se dedica a arte do incômodo”[20]
Vivemos num mundo pragmático, isto é, voltado para as coisas práticas da vida, sem questionar os cenários, as estruturas categoriais, os pressupostos comumente aceitos sem exame. Na filosofia, ao contrário, o que se busca é questionar o conhecimento familiar de que nos valemos na aplicação imediata dos conhecimentos. A filosofia é o reduto dos inconformados. Ela tem a convicção de que para se plantar algo definitivamente útil para a humanidade, é necessário destruir, quebrar ícones, ter a coragem de enfrentar o poder, sempre avesso à descoberta da verdade, remover os elefantes mortos da estrada. Vê-se que, neste sentido, a filosofia não encontra muitos adeptos e, ao contrário, é freqüentemente repudiada como sendo uma teoria inútil e, conseqüentemente, perda de tempo.
Entretanto, a filosofia é necessária. Por meio da reflexão é possível que se tenha mais de uma dimensão, ou seja, aquela que é dada pelo agir imediato no qual o homem prático se encontra mergulhado. É a filosofia que permite o distanciamento, para a avaliação dos fundamentos dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam, levantando, conseqüentemente, o problema dos valores. É a filosofia que reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade.
A filosofia impede a estagnação e sempre se confronta com o poder, não devendo sua investigação estar alheia à ética e à política. Nesse sentido, tem a função de desvelar a ideologia, ou seja, as formas pelas quais é mantida a dominação. Aliás, atentando para a etimologia do vocábulo grego correspondente à verdade (a-létheia, a-letheúein, “desnudar”), vemos que a verdade põe a nu[21] aquilo que estava escondido; aí reside a vocação do filósofo: o desvelamento do que está encoberto pelo costume, pelo convencional, pelo poder.
Por isso a atitude de filosofar exige coragem. A filosofia não é um exercício puramente intelectual. Descobrir a verdade é ter a coragem de enfrentar as formas estagnadas do poder que tentam manter o status quo, é aceitar o desafio da mudança”. (ARANHA, 1998 : 43).
Podemos aplicar aos filósofos tudo aquilo que Eduardo Prado de Mendonça, na obra O Mundo Precisa de filosofia, na p.128, aplica aos artistas:
são os vigilantes do exército da liberdade, que têm por função despertar os homens dos hábitos automatizados e da visão rotineira de tudo. A eles cabe sacudir o torpor causado pela repetição e profissionalização da vida humana. O filósofo é o antimecânico, pois, na medida que consegue promover esta visão original e desinteressada das coisas, ele contribui para a existência de uma tensão espiritual, que mantém o homem num estado de consciência e liberdade. Encerrando este item, podemos dizer que Filosofia é o conhecimento daquele que, tendo uma visão de conjunto do sentido radical das coisas e dos fenômenos, sabe separar[22] seus elementos significativos, hierarquizar seus valores, priorizar o humanamente o necessário e secundarizar o que não é necessário. Filosofia é o conhecimento daquele que, em tudo, está procurando o conteúdo silenciado das coisas: nos discursos, nos projetos, nas leis, na literatura, nas artes. Daquele que está à cata das ideologias, da malha de poder que subjaz a qualquer ação humana, - é isto que entendemos por crítica, como veremos no capítulo 04.
A filosofia é necessária para se descobrirem as ideologias - os conteúdos silenciados.
Finalmente, a filosofia é necessária “para que se quebrem os grilhões da escravidão sócio econômico-político-cultural que detém a maior parte da humanidade em situação de menoridade e abjeção”. LARA, Revista do SINPRO, 1990).
Enfim, a Filosofia é necessária em todas as instâncias da sociedade e, sobretudo, da escola para que ela não se estratifique, não se aliene, “não se alie ao comodismo das idéias feitas e dos conteúdos acabados”. A filosofia é necessária para questionar os fundamentos de si mesma e dos outros saberes.
4 - A Filosofia é necessária para se poder transformar a realidade
Na Antigüidade clássica e medieval, pensava-se que a filosofia - e qualquer conhecimento - tinha uma finalidade imanente, isto é, em si mesma. Hoje, quase todos aceitamos que a filosofia - como qualquer conhecimento - possui também, pelo menos a longo prazo, uma finalidade transitiva, isto é, vai além do sujeito que a possui, direcionando-se para a transformação da realidade. “Filosofia é um despertar para ver e mudar o mundo”, ensina Merleau-Ponty. “Filosofia como visão de mundo para a ação”[23].(. É que não basta pensar o mundo. Necessário se toma transformá-lo. Filosofia é a atitude daquele que, mesmo vivendo no mundo da especulação, lança as flechas reflexivas de seu pensamento na direção da transformação do mundo. A filosofia tem hoje a missão de iluminar a prática, da qual não pode estar separada em nenhum instante. Do contrário, não se poderá quebrar o círculo vicioso de idéias gerando idéias, à margem de um mundo sedento de transformação humanizadora. A filosofia deve ser a alavanca da transformação do mundo.
5 - A Filosofia é necessária para mostrar e firmar os fundamentos
Sem filosofia, todo conhecimento e toda ação dos homens são como monumentos edificados sobre a areia. Qualquer vento mais forte os derruba. Nenhum seguimento do saber humano é capaz de fornecer e apontar os fundamentos em que se baseiam o conhecimento e a ação dos homens. Só a filosofia tem esta função. A ciência tem a meta de chegar à verdade sobre a natureza, de estabelecer relação entre teorias e fatos, partindo de hipóteses, através de métodos adequados. Entretanto, verdade, teoria, hipótese, método em si não são questões científicas, mas filosóficas. O cientista parte delas, como questões resolvidas, todavia é a filosofia que as formula e procura respostas para elas. O cientista nem sempre está consciente disto, mas a realidade é assim. O texto de Adão Lara traz mais esclarecimentos sobre esta questão:
.“Outra dimensão da filosofia é aquela que se refere aos fundamentos. Seres humanos que somos, temos necessidade de pisar terra firme, de construir nossa vida, com tudo que ela tem de carência, interesse, aspirações e sonhos, em cima de algo sólido e fundamental. Não somente a casa material que habitamos precisa de alicerce. Também a casa da sociedade e da cultura que produzimos e pelas quais somos, por outro lado, produzidos, levanta-se em cima de alicerces. Chamem-se eles princípios, valores ou razões de existir,[24] nem sempre são evidentes e cognoscíveis à primeira vista. Nas múltiplas atividades da vida e, inclusive, nos variados saberes particulares, eles estão presentes e atuantes, sem que, todavia, sua presença marque a consciência reflexiva, cabe à filosofia evidenciá-los e questioná-los para ajuizar sua validade.
No passado, essa era a questão, à qual se dava o nome de questão metafísica. Hoje, com o descrédito da metafísica, chamemo-la de questão sobre os fundamentos da ordem cósmica e sócio-histórica”. (Adão Lara, Revista do SINPRO, ano 1, n° 1, 1990, p. 45-47)
6-A Filosofia é necessária para se preservar a ecologia
Nossa avaliação é que a questão ecológica é mais pertinente à filosofia do que à ciência e à técnica. É que o progresso tecnológico, a super valorização da razão instrumental e a proteção da natureza andam na contramão.
Foi depois da invenção da Ciência, a partir do século XVI, e do uso que a tecnologia vem fazendo desta, que o equilíbrio ecológico entrou em crise.
Concepção orgânica do mundo
Restringindo-nos ao seguimento filosófico ocidental, diria que os gregos, instigados pela coruja de Minerva[25], criaram e projetaram, na Idade Clássica e na Idade Média, a concepção orgânica do mundo. Para os filósofos gregos, o mundo era um organismo vivo permeado pela substância divina (pelo sagrado) que é a substância que determina e dirige o desenvolvimento do mundo. Na concepção popular, esta substância era formada pelos próprios deuses e na concepção dos filósofos era o “logos”, a razão. Em ambos os casos, porém, tratava-se do princípio, aquilo que está na subjacência do ser. Ferir a natureza era ferir o próprio homem - síntese do universo. Na Idade Média, em que a exigência do ter não padecia a mesma violência de hoje, em que a ganância do consumismo era mais submissa às exigências do ser, tinha-se o máximo carinho com a terra, considerada a grande mãe. Tão viva era ela, que se tinha a obrigação de lhe dar férias periodicamente. Era o tempo de repouso[26].
Concepção mecânica do mundo
A Idade Moderna, sob o pretexto de eliminar os exageros castradores da idade anterior, chegou ao extremo de trocar a visão clássica do mundo pela visão mecanicista, a visão do sagrado pela visão do profano, do homem e do mundo.
Então começa a bulha: a violência recíproca do sagrado e do profano. No bojo desta visão filosófica nasce a nova ciência (nova?). Um de seus principais protagonistas (Francis Bacon) adiantou a senha:
“Conhecer é poder”[27]. É do mesmo filósofo também o mote da nova ciência: “luta contra a natureza para... domina-la (!)”. Está declarada a guerra. A razão deixa de ser o “logos” orientador dos gregos para se tornar um instrumento de dominação e opressão. Os escombros da visão baconiana estamos descobrindo hoje. Nem mesmo o próprio Bacon, com seu alerta de que só se fizesse isto obedecendo às leis da natureza, conseguiu sustar os efeitos das premissas colocadas. E a terra continua de roldão na voracidade desbragada da nova civilização do ter. Com a revolução industrial, a situação chega a horrores nunca vistos.
Conseqüências da visão mecanicista
Coincidentemente, contemporânea da ciência, nasce a moderna escravidão. Pensamos estarem aqui as mais fortes premissas do desastre ecológico. Se o mundo é uma máquina, podemos sugar-lhe todas as possibilidades, sem nenhuma prestação de contas. Esvaída totalmente, a máquina é transformada em sucatas. De outra parte, se o homem é também uma máquina, vamos explorá-lo até às fezes. Depois abandonemo-lo aos carcomas dos anos e aos miasmas das endemias. Afinal, o novo escravo é negro e não tem alma!...[28] A pretexto de vencer a natureza, escravizemo-la. Da escravidão à destruição é um passo. A terra torna-se um deserto e o mar, a tumba dos africanos do meio-sul!
Missão da Filosofia
Nem tudo, porém, está perdido. Qual fênix, das cinzas renasce a filosofia. Nas fímbrias do horizonte começa aparecer uma outra visão de mundo. Já no fim do século XIX, o neotomismo fez um apelo profundamente clamoroso pela conciliação entre filosofia e ciência, tendo em vista o panorama das ameaças aos ecossistemas que se avizinhavam. Nietzsche (1854 - 1900, na Gaia Ciência afirma que a ciência é uma deusa de pés de barro, atualizando a preocupação de Montaigne (1533 – 1592) que proclamava:a filosofia é a consciência da ciência.
A ciência só explica. Não basta explicar, é necessário compreender que é o papel específico da filosofia. Explicação e compreensão não são termos equivalentes. Explicação é somente o ato de desdobrar a realidade diante de nós, ato de determinar as condições de um fenômeno (Lalande, Compréhension, p. 159): é prender a realidade nas malhas de conceitos lógicos, deixando de lado a realidade total do ser humano. A ciência é exclusivista. Ao contrário, o termo compreensão significa muito mais. Possui uma conotação afetiva e sinaliza o ato de se colocar no lugar do outro, de compartilhar com ele em seu ser e em seu fazer. Nos meados do século findo, o filósofo Joseph Vilatoux insistia que não basta explicar, é preciso compreender.
O Budismo, o Hinduísmo, bem antes, mais recentemente Schopenhauer e atualmente, Emannuel Lévinas, Alberto Schweitzer, Dalai Lama, Edgar Morin, Leonardo Boff[29] têm desenvolvido o conceito de compaixão universal e de uma consciência planetária. No dizer de Boff (Caderno de Fé e Política n° 14):

...não podemos nos entender como seres separados da Terra; nem podemos permanecer na visão clássica [30] que entende a Terra como planeta inerte, um amontoado de solo e de água penetrados pelos 100 elementos que compõem todos os seres. Nós somos muito mais do que isso. Somos filhos e filhas da Terra. Somos a própria Terra que se tornou auto-consciente, a Terra que caminha, como dizia o grande poeta mestiço argentino Athaulpa Yupanqui, a Terra que pensa, a Terra que ama e a Terra que celebra o mistério do universo.
Portanto, a Terra não é planeta onde existe vida... A Terra não contêm vida. Ela é vida, um super-organismo vivente. Falou-se em compaixão. “Ter compaixão significa sofrer junto com o universo, estar junto com a realidade mais doente do universo, respeitá-la. A paixão universal procura a felicidade de todos os seres vivos, não só o ser humano. (idem, ibidem).
A Terra precisa de compreensão. A ciência não é capaz de compreender. Está muito presa aos esquemas lógicos pouco afeitos a coisas do coração. Pouco resolve, diz Boff “decifrar o código genético, descobrir as leis químicas, a composição atômica e subatômica ou até mesmo liquidar com o mistério”. A natureza continuará gemendo e chorando à espera da libertação. Compreender é estabelecer um pacto com tudo que vem ao encontro do ser humano: astros, terra, plantas, animais, homens. Compreender é um fenômeno empático; colocamo-nos em lugar do outro Compreender é sentir-se dentro desta
...totalidade, que é o universo. Todos nós somos parte, parcela de uma totalidade que nos desloca para todos os lados, que é maior do que nós e do qual nós dependemos: do ar que respiramos. do feijão com arroz que comemos, do chão para os nossos pés, em que possamos caminhar descalços sem logo pegar vermes, ou ácidos tóxicos que nos transmitem doenças. Nós temos esse direito, mas as coisas também têm sua autonomia. A pedra tem o direito de existir; o animal que levou milhões de anos para se formar tem o direito de continuar existindo” (BOFF, op. cit. p. 12).
A filosofia é compreensiva. Torna-se mais que urgente colocar em relevo o papel da filosofia diante da ecologia. A ciência só explica. Para explicar, ela se afasta do objeto com a finalidade de melhor relacionar seus fenômenos, quanto a variáveis antecedentes, conseqüentes e intervenientes. A ciência, com os olhos da razão, só vê a realidade numa teoria que é uma espécie de espelho retrovisor. A filosofia, ao contrário, se aproxima da realidade, abraçando-a empaticamente, realizando assim a etimologia da palavra compreensão, que é: “cum + preendere”. Prender com ... com tudo que temos: razão, memória, imaginação, paixão, afeto, sensibilidade, coração. A filosofia abraça a realidade com um afago meigo e universal
Heidegger, em sua fenomenologia, sinaliza subliminarmente para a necessidade de salvar o mundo para salvar o homem. É que não existe homem sem mundo. Sendo a recíproca verdadeira. Se o homem é a instância de desvelamento do mundo (como afirma Heidegger)[31], aquele depende deste. O homem só é homem com o mundo, ponteia Sartre: Sem o “em-si” não existe o “para-si”. (Sartre). O “em-si” é o mundo, o “para-si” é o homem.
07 - filosofia é necessária para se preservar e fortalecer a democracia
Contemporaneidade da filosofia e da democracia
Filosofia e democracia nasceram ao mesmo tempo. Em abono a esta afirmativa, vamos nos socorrer de algumas assertivas de Cornellius Castoriadis[32]: “Filosofia e democracia nasceram juntas... A sua solidariedade resulta do fato de ambas exprimirem a sujeição da heteronomia”. (Castoriadis, 1992 : 246 e p. 138). “A filosofia foi criada na polis e pela polis e faz parte do mesmo movimento que criou as primeiras democracias” (idem, p. 251). “O nascimento da política é indissociável do nascimento da filosofia” (idem, p. 140 e 137).
Conceituação e qualificação de democracia
Democracia é o melhor regime de governo, por apresentar o mais refinado mecanismo de que o homem pode se servir para expressar sua liberdade que é seu maior bem e para controlar a máquina do Estado, reduzindo assim a servidão. A democracia é o reduto das liberdades e responsabilidades individuais em que os indivíduos são sujeitos autônomos, cidadãos livres, diferentemente dos regimes totalitários em que os indivíduos não passam de sujeitos “assujeitados”, massa de manobra dos poderes dominantes.
Democracia é o regime de governo em que a soberania do cidadão é limitada pela soberania das leis e pela transferência da soberania individual e de grupos aos eleitos legitimamente. Outrossim, a democracia compreende a auto-limitação do Estado pela divisão dos poderes, pela garantia aos direitos individuais e a proteção da vida privada. Além de método de governo, é a democracia, sobretudo, uma virtude da natureza humana, um hábito existencial. Diante destes conceitos, a velha definição de democracia, complementada por Lincoln[33], parece uma logomaquia ou fabulação meio abstrata.
Democracia e conflito
Que a democracia seja consenso, todos sabemos. O que pode estranhar é que ela é igualmente diversidade, dissenso, antagonismo, conflito. E é este caráter substancial da democracia que queremos ressaltar aqui.

“A democracia necessita, ao mesmo tempo, de conflito de idéias e de opiniões, que lhe conferem sua vitalidade. Mas a vitalidade e a produtividade só podem se expandir em obediência às regras democráticas que regulam os antagonismos, substituindo as lutas físicas pelas lutas de idéias, e que determinam , por meio de debates e eleições, o vencedor provisório das idéias em conflito, aquele que tem, em troca, a responsabilidade de prestar contas da aplicação de suas idéias em conflito, aquele que tem, em troca a responsabilidade de prestar contas da aplicação de suas idéias” (Morin, 2000: 108).
A experiência trágica dos totalitarismos vieram ressaltar esta característica da democracia. A democracia compreende e fomenta a diversidade de interesses e de idéias. A democracia deve ouvir o grito das minorias e dos contestadores, por muito desviante e heré- tico que seja. Edgar Morin[34] expressa o seguinte:
“Do mesmo modo que é preciso proteger a diversidade das espécies para salvaguardar a biosfera, é preciso proteger a diversidade de idéias e opiniões, bem como a diversidade de fontes de informação e dos meios de informação (imprensa, mídia), para salvaguardar a vida democrática” (Morin, 2000 : 108)
Continua Morin: “A democracia necessita ao mesmo tempo de conflitos de idéias e opiniões que lhe conferem sua vitalidade e produtividade. Mas a vitalidade e a produtividade dos conflitos só podem se expandir em situação de diálogo”.
Por tudo isto, vê-se a necessidade da filosofia para implementar a democracia.
Democracia, filosofia e educação

Democracia é o regime de governo que emerge de baixo para cima - vem do povo. Também é bom notar que nossa democracia está longe daquela que nós queremos, ainda é algo meio abstrato, muito influenciada pelo poder do dinheiro (seria mais um plutocracia?), mas é a que temos no momento; “ruim com ela, pior sem ela”. A pior democracia ainda é melhor do que a melhor ditadura. A democracia é tão importante, que ela deveria ser guindada a um dos principais mandamentos de qualquer religião.

Como virtude, hábito social e moral, a democracia deve ser ensinada desde o alvorecer da vida das crianças, como acontece com todos os hábitos.
Matthew Lipman, de quem já se falou no item 03, à maneira de John Dewey, é um entusiasta da democracia, parece ter entendido isto muito bem.
Desde Aristóteles, passando pelo Presidente Lincoln, sabia-se que democracia é “governo do povo, pelo povo, para o povo”. Esta definição, entretanto, não passava de abstração, melhor dizendo de uma logomaquia, como já se mencionou, por lhe faltar um método de aplicação. Dewey veio trazer uma base concreta para esta abstração. Democracia, como já lembramos no cap. 02, é mais que “um método de governo”; é, primordialmente, “um modo de existência associada, uma experiência conjunta e comunicada. Democracia é uma experiência compartilhada” (KNELLER, p. 66). O que Dewey quer dizer é que democracia é o hábito de respeitar e aceitar as experiências alheias, tendo em mira um consenso. Esse hábito, porém, só se adquire com a educação, desde a mais tenra idade. Se a criança não se acostumar a ter hábitos democráticos no seio da família, em sua rua, em seu bairro, no clube, na escola, jamais será ela um democrata. E, não se tendo pessoas democráticas, jamais poderá haver democracia: falta sua alavanca de sustentação.[35]
A propósito, vamos citar algumas reflexões de Walter Kohan:
Se quisermos democratizar nossas sociedades, diria Lipman, é preciso educar nossas crianças na filosofia e democracia... Porque se conseguirmos que elas pratiquem a filosofia em comunidades de investigação deliberativa, então haverá muito mais chances de que elas sejam pessoas razoáveis e democráticas e que, a partir desta prática filosófica e democrática, elas lutem para que as instituições e práticas sociais sejam mais igualitárias e menos autoritárias.
Desse modo, para que nossas crianças sejam democráticas, precisamos envolver-nos em diálogos filosóficos com elas, porque esses diálogos são parte insubstituível da liberação democrática.
...sem a prática da filosofia, as crianças não poderiam ser cidadãos críticos, reflexivos e atenciosos, e a democracia não pode crescer onde há cidadãos acríticos, não reflexivos e pouco atenciosos. Por isso, diria Lipman, se a democracia é desejável, a filosofia é necessária... praticar a filosofia é formar na democracia” (KOHAN, 2000 : 55-56).
Para finalizar este capítulo, nada melhor do que lembrar Harold Bloom:[36] “uma democracia depende de pessoas capazes de pensar por si próprias. E ninguém faz isso sem ler”. Sem ler filosofia, acrescentamos nós.
O8 - A filosofia é necessária para ajudar o entendimento das outras disciplinas e a personalizá-las em uma totalidade que é a pessoa humana
Cada vez mais ganha terreno o paradigma da interdisciplinaridade[37] e transdisciplinaridade[38].
A filosofia, que tem a função de unir as pessoas pelo diálogo, é mais do que propícia para desempenhar o papel de fomentar a interdisciplinalidade e transdisciplinaridade.
A filosofia é necessária para a totalização e personalização de nossos conhecimentos. Muitos graduados não são pessoas formadas em sua integralidade. Fazem-se portadores de disciplinas, mas não são pessoas competentes e sábias em sua profissão. Tornam-se verdadeiros cabides de conteúdos compartimentados ou uma colcha de retalho: um médico, por exemplo, no dia da formatura, numa haste carrega a biologia, na outra carrega a química, na outra, as propriedades terapêuticas dos minerais, na outra, a contribuição da fitoterapia ou uma especialização qualquer; não são médicos, no muito, estão médicos, portadores que são de dispersivas intuições e apetrechos teóricos da arte curativa; perderam o viés da transdisciplinaridade e se perderam no emaranhado da multidisciplinaridade onde a totalidade do ser humano se evapora. Daí os efeitos colaterais mutiladores de muitas práticas terapêuticas, máxime na alopatia. O que estou dizendo da medicina, poderia dizer de qualquer outra profissão.
Sejamos sinceros, Nietszche tem razão quando disse que a ciência é uma deusa de pés de barro; entendido, a ciência multidisciplinar, não a transdisciplinar. Mas, a propósito, demos a palavra a Edgar Morin, 2000 : 45-47:
... o século XX produziu avanços gigantescos em todas as àreas do conhecimento científico, assim como em todos os campos da técnica. Ao mesmo tempo, produziu nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e complexos, e esta cegueira gerou inúmeros erros e ilusões, a começar por parte dos cientistas, técnicos e especialistas.
Por quê? Porque se desconhecem os princípios maiores do conhecimento pertinente. O parcelamento e a compartimentação dos saberes impedem apreender ‘o que está decido junto’... Trata-se de entender o pensamento que separa e reduz, no lugar do pensamento que distingue e une. Não se trata de abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem da análise pela síntese. Existem desafios da complexidade com os quais os desenvolvimentos próprios de nossa era planetária nos confrontam inelutavelmente.
...O fluxo de conhecimento, no final do século XX, traz nova luz sobre a situação do ser humano no universo. Os progressos concomitantes da cosmologia, das ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-história, nos anos 60-70, modificaram as idéias sobre o Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio homem. Mas estas contribuições permanecem ainda desunidas. O homem continua esquartejado, partido como pedaços de quebra-cabeça ao qual falta uma peça... É impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa unidade de maneira insular, fora dos cosmos que a rodeia...do espírito do qual somos constituídos ... As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas. Assim a complexidade humana torna-se invisível e o homem desvanece ‘como um rastro na areia’. Além disso, o novo saber, por não ter sido religado, não é assimilado nem integrado. Paradoxalmente, assiste-se ao agravamento da ignorância do todo, enquanto avança o conhecimento das partes.













CAPÍTUO 03

Na história, os obedientes são castigados e a desobediência é premiada (Mangabeira Unger)
ORIGEM DA FILOSOFIA

A filosofia ocidental, de que trata este livro, provém de três fontes principais: mito, filosofia oriental e fatores de ordem histórica.

1) Mito
Plenipotenciário nos tempos arcaicos (tempos primordiais), mas desprezado por Aristóteles e toda tradição clássica, o mito volta vigorosamente no século XX. Aristóteles, na esteira de Xenófanes, deu a entender que a filosofia foi criada para substituir o mito, entretanto, o mito continua hoje vigoroso como nunca, não se confirmando a previsão do grande pensador. Mas, convenhamos que Aristóteles contribuiu para que o mito ficasse fora do campo por muitos séculos. Só no século XX, é que vai ser reabilitado[39]. Chegou-se à conclusão de que todas as formas de conhecimento são necessárias para o progresso e hominização do ser humano.

Mito: conceituação e características
O mito vale-se da linguagem figurada, metafórica, fantástica, para configurar a compreensão[40] da realidade em geral e os fatos da existência ou a própria existência. É uma narrativa autêntica, preciosa e fantástica, porque apela para as forças da fantasia que não têm coerência interna, é contraditória, e, por isso, sujeita a manipulações. Assim, quanto à sua fidedignidade, não se apóia ela sobre a logicidade do conteúdo, mas na autoridade do narrador, mesmo que este não tenha presenciado o fato, mas tenha ouvido de outros. Sendo objeto da fantasia, não é crítico, mas objeto de crença, não sendo, por isso, passível de discussão.
O mito atende a dois impulsos fundamentais do ser humano. Um de fuga diante dos perigos do mundo; fuga que não é desespero, mas apaziguamento e tranqüilização propiciados pela presença dos deuses. O outro impulso está ligado aos instintos, forças poderosas que impulsionam os humanos em seu processo de hominização – uma questão de satisfação dos desejos. Não podendo satisfazer esses desejos, involuntariamente, cria-se o mito (no caso utopia) que satisfaz ou antecipa a satisfação dos desejos.
Não sendo objeto de discussão, o mito canaliza as emoções coletivas, tranqüilizando o homem no mundo que o ameaça. Segundo Gusdorf, o mito não é uma produção pessoal, mas coletiva, visto a consciência individual estar dissolvida na consciência coletiva. Isto, continua Gusdorf, não é negação da individualidade, desde que se entenda a individualidade como “um nó no tecido das relações sociais...o eu se afirma pelos outros...” [41]
É verdade que o mito hoje é empregado como sinônimo de ficção ou de ilusão, mas continua ainda de pé sua condição de revelação do sagrado dos tempos primordiais, fabulosos. É a narrativa de uma coisa ou do comportamento humano.
Conhecer os mitos é apreender o segredo da origem, é apreender como as coisas vieram à existência, como encontrá-las, como fazer com que reapareçam e desapareçam (Elíade, p. 16).
O mito está ligado ao primeiro conhecimento que o homem adquiriu sobre si mesmo e sobre o meio. Ele não é doutrina, mas apreensão das coisas, dos seres e do próprio homem. O mito trata de condutas e atitudes, da inserção do homem na realidade. Em seu contexto vivido, o mito afirma-se como modo espontâneo do homem ser no mundo.
Por seu caráter sagrado, exemplar e significativo o mito é um contexto compreensivo.
O mito explica[42], não com as estruturas da razão, mas com a fenomenologia da emoção e da afetividade. O mito é pré-reflexivo, vivenciado. Note-se que o mito, nutrindo-se de afeto, não usando todos os recursos da razão, facilmente pode ser manipulado pelas ideologias.
O mito é uma forma autônoma de pensamento e de organização cognitiva do mundo; é uma forma não secundária nem subordinada ao conhecimento racional que, ao contrário, com o qual está entrelaçado (Jung);
Os mitos são representações psíquicas que manifestam a essência da alma[43];
O homem não inventa os mitos, ele apenas os vivencia (Jung).
Os mitos são revelações da psique pré-consciente; são revelações inconscientes a respeito de acontecimentos psíquicos.
Os mitos têm um significado vital; a perda desse significado, mesmo para o homem civi-lizado, sinaliza uma catástrofe moral, melhor, catástrofe ética.[44]
Os mitos têm significado psicoterapêutico, até mesmo em nossos dias (Jung).
Os mitos são narrações verdadeiras e compreensivas do sagrado, do exemplar, do sig-nificativo e compreensivas do mundo e tudo que nele existe.
Como o mito narra a origem do mundo e tudo que nele existe?[45]
De três maneiras principais ou de três encontros de deuses:
Encontro do pai e da mãe das coisas e do seres, ou seja, tudo provem de relações sexuais entre os deuses (forças divinas). Essas relações geram os titãs (seres semi-humanos e semi-divinos), geram os heróis (filhos de deus com uma humana ou filhos de uma deusa com um humano), geram o reino mineral, o reino vegetal, o reino animal, o reino humano e todas as qualidades (como quente/frio, seco/úmido, claro/escuro, bem/mal, justo/injusto, belo/feio, certo/errado, etc). Ver exemplo abaixo;
Encontro de rivais ou de aliados. Nesse caso o mito narra uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança para provocar a emergência de alguma coisa no mundo dos humanos;
Encontro dos deuses para recompensa ou castigo. Recompensa para quem obedece e castigo para os desobedientes.
Exemplos de narrativa mítica:
- Criação do deus Eros, na apresentação de Marilena Chauí:
Houve uma festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria aparece; apareceu, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, inventa mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado.(CHAUI, p. 35).
- Criação do homem: Prometeu, um titã ou semideus (sem a permissão de Zeus) idealizou criar o homem. Fez um boneco de barro e para dar-lhe vida, roubou o fogo do monte Olimpo.
Em castigo, Zeus ordenou que fosse amarrado ao monte Cáucaso onde toda a noite aparecia um abutre para comer um pedaço de seu fígado.
- Aparecimento dos males: Ainda relacionado com o castigo pela criação do homem, temos o mito de Pandora.
Ao fugir do monte Olimpo transportando o fogo que deveria dar vida ao homem, Prometeu foi atingido por uma caixa lançada em suas mãos pelo porteiro da morada dos deuses. Prometeu entregou a caixa para seu irmão Epimeteu, este a passou à sua esposa Pandora. Esta, mulher de estonteante beleza, mas de uma curiosidade sem medida, abriu a caixa, e de dentro dela saíram todos os males que se espalharam pelo mundo. Pandora, no entanto, teve a esperteza suficiente para fechar a caixa, antes de escapar o maior tesouro da humanidade, que é a esperança.
Os mitos são comandados pela fantasia e imaginação; apesar de contraditórios, não são críticos.
Diante das ameaças do mundo, os mitos tranqüilizam o ser humano e o acalmam. Os mitos são o modo expontâneo de o homem viver no mundo.
Renê Guenon afirma que devemos reconhecer que o conhecimento mito-poético é mais importante que o conhecimento racional. Sabemos que Nietzsche defende a superioridade do mito sobre a razão e faz deste a alavanca de toda sua filosofia.

O mito hoje
Já foi lembrado que o mito teve e ainda tem uma missão apaziguadora e tranqüilizante. Hoje podemos dizer que o mito assume duas situações de certa maneira similares. Primeiro quando ele se reduz a um conjunto de elementos materiais, que a sociologia denomina de fetiche. São elementos que galvanizam (imantam) as pessoas de tal maneira que, as mais das vezes, atrapalham seu desempenho na vida social. Aqui podemos lembrar alguns colecionadores que, objetivamente falando, são uns autênticos maníacos. Do mesmo modo, encontramos pessoas ou grupos de pessoas (organizações) que também cumprem este papel galvanizador ou imantador. Há pessoas que são fãs incondicionais (geralmente sectários) de, por exemplo um clube esportivo, ou de um superstar na política, no esporte, na música, etc. Nesta situação, o mito pode ter seu lado bom , quando o superstar é um modelo de vida (exemplo : Jesus Cristo, Buda, Confúcio, Ghandi, Luter King, Chico Mendes e tantos mais) e apaziguar as pessoas, trazendo-lhes congruência.

Passagem do mito para a filosofia
A passagem do mito para a filosofia durou muito tempo (séculos). Não houve “o Milagre grego”. O certo é que a existência do mito foi indispensável para a emergência da filosofia, pois a razão, instrumento da filosofia, foi se constituindo aos poucos através da história.
Entretanto, dada a multiplicidade, a plurivariância, a multifuncionalidade e a multidimensionalidade das coisas, dado que o caos universal deveria ser transformado em cosmos; dado que tamanha diversidade deveria se unir em alguma instância, a razão desabrochando , tornando-se essa instância.[46]
Como se pensou por muitos séculos, a passagem do mito (da fantasia) para a filosofia (razão) não se deu em curto prazo de tempo. O que se chama na História de “O milagre grego” não aconteceu, tratando-se de uma visão simplista e ahistórica. O surgimento da filosofia foi um processo historicamente lento que veio sendo preparado lentamente por um passado mítico, cujas raízes permeiam ainda a nova consciência emergente (Gusdorf).
Por tudo isto, o mito é importante, mas não se pode negar que algo faltava à humanidade no plano do conhecimento, para tentar transformar o caos em cosmos. É isto que deixa muito claro o filósofo Anaxágoras (VI/V a. C.): “Tudo era um caos até que se ergueu a mente, para pôr ordem nas coisas”.
Apesar da posição abalizada de Giovanni Reale [47] e de outros pensadores, cresce o seguimento daqueles que estão a favor da tese de que, a nível de pensamento, o que aconteceu na Grécia, já havia sido feito no mundo oriental. O historiador René Guenon, certamente, inspirado em Nietszche, dirá que a filosofia é apenas um momento secundário da história espiritual da humanidade e que tudo aquilo que estava feito no Egito, na Babilônia, na Índia, é extremamente mais importante do que aquilo que os gregos fizeram, não tendo havido a distinção completa preconizada por Reale, entre conhecimento mito-poético e conhecimento racional.
1 - Influência da filosofia indiana na filosofia grega
1.1 - Tanto uma como a outra, tem a mesma matriz: ambas nasceram da religião, ou
melhor, da mitologia;
1.2 - A filosofia grega se afasta da religião e se torna individualista; ao passo que a
filosofia indiana continua substancialmente ligada à religião e conserva seu caráter
coletivista (PADOVANI, 1984 : 64);
1.3 - Os princípios da filosofia indiana são bem anteriores ao pensamento grego, colo-
cando-se lá pelos anos mil antes de Cristo, havendo fortes indícios de que a filosofia
grega não ficou imune às influências da filosofia indiana, e mesmo da filosofia
chinesa (iniciada no séc. VI);
1.4- A salvação está no conhecimento (Sócrates e Aristóteles);
1.5 - A filosofia Maya contém muitos elementos lógicos semelhantes aos contidos na
doutrina do silogismo de Aristóteles (Padovani, p. 81);
1.6 - O dualismo eterno do espírito e da matéria difundido pelos gregos (Aristóteles) já se
encontrava na filosofia de Kanada e no Jainismo (Franca, p.22/23);
1.7 - A doutrina do samsara que apregoa o evoluir conflitante da realidade pode ter
influenciado no “vir a ser” de Heráclito (Padovani. p. 66);
1.8 - Na linha de pensamento platônico se inclui Buda, quando este sinaliza: “É loucura
apegar- se à vida e é sabedoria libertar-se dela” (Padovani., p. 78);
1.9 - Também o Ioga dos Upanixades lembra muito o Mundo das Idéias de Platão,
quando este ensina que a solução do problema da vida está na evasão do mundo
sensível, procurada não pela via prática, mas pela via teorética e contemplativa;
1.10 - Os sofistas indianos devem ter influenciado os sofistas gregos; também eles são
críticos, céticos, relativistas, imorais (Protágoras), mundanos, interesseiros e de-
molidores do conhecimento racional bem como do conhecimento mítico (Padovani,
p.67/68);
1.11 - Quando os Upanixades (séc.VII) ensinam que a essência do homem é a alma
(parablata, alma e idéia é mesma coisa) e que o mundo físico é a decadência da espi-
ritualidade, lembra Platão, com seu mundo das idéias;
1.12 - Platão deve ter sido influenciado pelos Upanixades, quando estes exaltam uma
moral acética, considerando os bens do mundo como vãos e ilusórios;
1.13 - Possivelmente, o intelectualismo aristotélico teve influência dos Upanixdes.Tanto
para estes quanto para Aristóteles, a finalidade do ser humano é o conhecimento;
2 – Influência da filosofia chinesa na filosofia grega
2.1 – Para Aristóteles, a razão é a norma suprema que norteia o agir humano. Possível-
mente, ele se inspirou em Lao-tsê que viveu 200 anos antes (este mostra tendências
altamente especulativas); afirma que acima de todas as coisas, existe a razão, norma
absoluta de toda atividade moral (Franca, p.27);
2.2 – Confúcio insistia muito sobre o amor ao próximo, a piedade filial, o desprezo da
riqueza e das honrarias – tudo isto lembra Sócrates e o estóicos;
2.3 – Heráclito, criador da dialética (grega) certamente conhecia a polaridade chi-
nessa do YIN VERSUS YANG que são forças polares complementares do universo,
cuja tensão e conflito resultam em equilíbrio, ordem e mudança. Esta polaridade é
fundamental no Confucionismo e no Taoismo (Rohmann).
3 - Fatores de ordem histórica, da emergência da filosofia
A filosofia é filha da história; ela não é algo que precede à história. Não é um a priori.
Cada contexto sócio histórico tem sua filosofia própria que não se confunde com a de outros contextos sócio-históricos. Não é por acaso que a filosofia vai nascer e progredir com todo viço na Grécia. Pois antes dela, já vicejavam na pátria dos gregos, a organização política, as leis, as letras, a moeda, as cidades.
Se não tivesse havido a precedência desses fatos históricos, a filosofia não teria sobrevida.
Em vista disso, para entendermos melhor a emergência da filosofia, necessário se faz relacionar e enfatizar os referidos fatos. Desses lembraremos, em seguida, os mais significativos.
A História sinaliza que a filosofia está presa às ideologias e ao poder dominante. Integrante da condição humana, engajada na luta contra-ideológica e contra-hegemônica, a filosofia é também caudatária do poder político. Se ela vai progredir abertamente na Grécia é por causa da hegemonia política e econômica dos gregos, que, vencendo o poderosíssimo Império Persa, assume o controle mundial. E, se, hoje, está a pleno vapor nos Estados Unidos, é por causa da supremacia mundial do Tio Sam.[48]
O afloramento da Política se transformou no mais importante elemento propulsor do uso da razão que é o instrumento por excelência da Filosofia. Aliás entre Política e Filosofia haverá uma forte relação dialética – uma não existiria sem a outra.
A propósito, vamos lembrar a posição abalizada de Castoriadis e Ranciére que afirmam categoricamente que política (democracia) e filosofia nasceram juntas, na referida relação dialética. A filosofia teria nascido órfã se não fosse o contexto hegemônico que vivia a Grécia a partir do século VIII a.c. com a vitória dos gregos contra os troianos. Depois vieram as vitórias memoráveis dos gregos contra o poderoso Império persa. Assim, a Grécia por muitos anos (mais de duzentos) dominou politicamente o mundo, até a supremacia dos romanos. Em Roma, como já acontecia em algumas cidades gregas (Esparta, por exemplo), a filosofia vai progredir pouco, possivelmente por causa de sua agressividade bélica excessiva. Quanto à Grécia, em geral, gozava ela de soberania universal, enquanto o Médio e o Extremo Oriente passavam por crises políticas.
Outro fator importante foi a criação das cidades. Falar em público é diferente de falar no recôndito dos lares sob o olhar complacente do chefe e de outros familiares. Agora, falar em público exige circunspecção e prudência para expressar o pensamento.
Outro fator é o aparecimento das leis. Sob o olhar vigilante da lei, o homem é obrigado a pensar mais, pois antes, os crimes eram julgados pelos senhores feudais que conheciam pessoalmente seus súditos. Agora, o julgamento se faz pela aplicação de leis abstratas que exigem especialistas. Isto exige um pensamento mais acurado. Onde há pensamento acurado, a filosofia está presente.
Fator relevante é a invenção da escrita. Falar não exige lá muita responsabilidade. As palavras voam, mas a escrita fica. Exige que se pense muito para não deixar para a posteridade coisas que não se deve dizer.
Finalmente, vamos lembrar a criação da moeda. Antes, as trocas eram feitas em espécie, que não exigiam muito raciocínio. Os olhos e a força física eram os juízes. Agora, sendo as trocas feitas com moedas e sendo essas, uma abstração, exige-se mais a força do pensamento.

CAPÍTULO 04

A crítica é o sal da filosofia. Como o sal que não salga é inútil,também inútll é a filosofia que não critica (Geraldo)

CARACTERÍSTICAS, CONCEITUAÇÃO E DIVISÃO DA FILOSOFIA

Filosofia não é um conhecimento qualquer. Não é uma tribuna livre onde se chega e se dizem coisas de somenos, sem coerência e sem consistência. Ela é detentora de “status” próprio, de individualidade diferenciada. Drapeja em seu mastro um pavilhão de características. Característica é um sinal ou conjunto de sinais que diferenciam as coisas ou os conhecimentos. Características da filosofia são, pois, aqueles sinais que a diferenciam dos outros conhecimentos. As três primeiras características: totalidade, radicalidade e criticidade são primordiais e de importância tão grande que podemos considerá-las verdadeiras dimensões da filosofia. A seguir, relacionaremos as principais características da filosofia, com os respectivos e devidos comentários:
Totalidade - Esta característica expressa o desejo profundo do ser humano de ter uma visão de conjunto da realidade. Não se trata de o filósofo conhecer especificamente todos os aspectos da realidade, mas de ter uma visão de conjunto, uma visão onímoda. O todo ou o global, é Morin, p. 37 quem diz:
é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional... O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras... Marcel Maus dizia: ‘É preciso recompor o todo’. É preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes”. Na mesma página, Morin cita Pascal: “...considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo...” E continua Morin na mesma página:
“...tanto no ser humano quanto nos outros seres vivos, existe a presença do todo no interior das partes: cada célula contém a totalidade do patrimônio genético de um organismo policelular; a sociedade, como um todo, está presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações e em suas normas.Dessa forma, assim como cada ponto singular de um holograma contém a totalidade da informação do que representa, cada célula singular , cada indivíduo singular contém, de maneira ‘hologrâmica’, o todo do qual faz parte e que, ao mesmo tempo, faz parte dele.”
Radicalidade - Também é uma aspiração do ser humano chegar à raiz das coisas, não se contentando com a periferia ou superfície das mesmas. Ser radical é proceder como a raiz de uma árvore com sua haste principal e robusta caminhando para o centro da terra, mas sem abandonar suas ramificações, pois estas são partes e complemento daquela. Voltando ao exemplo da medicina, ela não está, de maneira geral, preocupada em ir à raiz da doença que, muitas vezes, está ligada a uma crise existencial que, não solucionada, impede qualquer cura puramente biológica. Vê-se que radicalidade é uma virtude; não é um vício a ser evitado, portanto; ao contrário de radicalismo ou de sectarismo que são vícios: ambos são um caminhar e um agir com olhos vendados, não raro, dando murro no escuro. Criticidade - Esta característica é tão íntima da filosofia como a semente é íntima da fruta; em parte já tratamos dela no capítulo 02, e dada sua importância e suas implicações, será ela objeto de um estudo à parte no capítul seguinte. Engajamento - Graças às críticas de Marx e suas invectivas contra a filosofia tradicional, que só levava a pensar o mundo, sem preocupação de transformá-lo, hoje se insiste nesta característica: o engajamento. Filosofia já não é mais “aquilo com qual e sem o qual, fica tudo igual a”. Ela carrega, no mundo contemporâneo, um forte apelo de transformação da realidade - uma filosofia da práxis. Vê-se que esta característica só se tornou explícita a partir de Marx, e sua importância cresce cada vez mais. Subjetividade/intersubjetividade - Seja qual for a filosofia que se tenha, ela é sempre a manifestação da subjetividade - um conhecimento que, mesmo se relacionando com o mundo objetivo, tem claramente sua matriz no sujeito que conhece. Não confundir subjetividade com subjetivismo que não tem nenhuma relação com o mundo externo. Assim, o sujeito torna-se o único padrão, paradigma ou baliza de julgamento. Ele é a referência de si mesmo. É o que em psicologia se chama “sujeito inflacionado”. Ah! Também é bom notar que, pelo mesmo motivo, subjetividade nada tem a ver com o viés do” achismo”, com “opinionite”, expressões que não têm guarida no cenário filosófico. Quanto à intersubjetividade, devemso lembrar que não se faz filosofia isoladamente, pelo menos, no mundo de hoje. Ela se faz dialogicamente em comunidade de pensamento.[49]
Teoria - Ainda que, a longo prazo, a filosofia seja o único conhecimento capaz de salvar o homem na “ corda-bamba” da vida, da hecatombe universal - tendo, portanto, uma finalidade prática - ela é um conhecimento teórico: sua matéria prima são as idéias, melhor expressando, as dúvidas, os problemas, como veremos logo abaixo. Dúvida - Dúvida é a suspensão do juízo diante de duas afirmações (ou proposições) correlatas. A partir de Descartes, começou a crescer a convicção de que a finalidade da filosofia não era a posse da verdade, mas sua busca e que, para isso, nada melhor do que empregar-se o método da dúvida que o próprio Descartes se encarregou de criar ou aperfeiçoar[50]. Temos duas espécies de dúvida. Dúvida comum - absoluta - que é a dúvida do ignorante - nesciente - e a dúvida metódica, que é a dúvida de quem sabe; sendo um recurso estratégico para aprofundar o conhecimento da realidade. Esta última é que foi crida por Descartes, na seqüência de Santo Agostinho.
Numa linguagem rigorosa, podemos dizer que a dúvida, o problemático, é, à primeira vista, a matéria prima da filosofia.
Com a palavra o prof. Lipman:
a filosofia se ocupa com conceitos essencialmente contestáveis. A filosofia é atraída pelo problemático, pelo controverso, pelas dificuldades conceituais que se escondem nas frestas e interstícios de nossos esquemas conceituais. Não é que os filósofos estejam inclinados a celebrar apenas essas dificuldades e não fazer qualquer esforço para removê-las, propondo esclarecimentos e elucidações. É que, simplesmente, eles reconhecem tais esforços como inerentes ao sisifismo: o problemático é inesgotável e se reafirma, desumanamente, quaisquer que sejam nossos esforços.
A filosofia investe contra o problemático, como a mariposa é atraída pela chama, ou como o combatente se lança à jugular de seu oponente. Não é incomum, observar filósofos, procurando suas próprias jugulares. O significado dessa procura pelo problemático é que gera pensamentos. (LIPMAN, 1990 : 51-52).
Assim procedendo, está a filosofia realizando um dos impulsos fundamentais do ser humano, que é o impulso da curiosidade, e também está realizando uma de suas dimensões fundamentais, que é a radicalidade.
Intuição/dedução - Intuitivo é o conhecimento que se faz num relance, sem intermediação, sem interferências; ele se dá sem raciocínio; em oposição, dedutivo é o conhecimento raciocinado, intermediado; faz-se por inferências que se tiram de princípios gerais.
A filosofia é um conhecimento que nasce das intuições de princípios que, submetidos ao raciocínio dedutivo, chegam a conclusões - nunca dogmáticas, mas passíveis de dúvida, de problematização.
Compreensão – A filosofia compreende. Ver o que foi escrito a propósito no cap. 02, item 06 e no cap. 03, p. 48 quando tratamos da característica da “Compreensão”
Sistema - A filosofia é sistemática. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião, à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado, para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propagan-da. A propósito, eis o que Marilena Chauí afirma:
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação[51] racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático, porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
... a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana. (CHAUI, 2006 : 21).[52]
Interdisciplinaridade[53] - A filosofia é interdisciplinar, ela é necessária para se pensar as outras disciplinas.
O problema atual – diz Lipman – não está bem na expansão da ciência em suas especializações, o que é louvável, mas no fato de estas perderem seu
...invólucro filosófico que as manteria unidas. Quando uma disciplina imagina que sua integridade repousa em livrar-se de suas considerações epistemológicas, metafísicas, estéticas, éticas, lógicas, é que se torna meramente um corpo de conhecimento e procedimentos alienados...
O que está surgindo agora é que o pensamento está se tornando o fundamento do processo educacional e que a educação construída sobre qualquer outra fundação... será superficial e estéril”... a filosofia precisa deixar de ser um assunto de universidade e tornar-se uma matéria da escola primária – uma disciplina cuja tarefa é preparar os estudantes a pensar nas outras disciplinas. (LIPMAN , 1990 : 52)

E continua Lipman na p. 55:
... é da própria natureza da filosofia transcender os pontos de vista das disciplinas específicas, ser interdisciplinar e, ainda, ter um senso global de proporção que a coloca numa posição melhor, para formular aqueles objetivos: (...) quando os especialistas em educação e os representantes das disciplinas tentam formular os objetivos da educação, só podem fazê-lo tornando-se filósofos.
Os dias atuais caracterizaram-se como a era dos especialistas. O problema da especialização do mundo científico é que ela conduz a uma pulverização do saber, à perda da visão mais ampla do conhecimento humano.
Nesse sentido, o filósofo francês contemporâneo Georges Gusdorf adverte:
O especialista do tipo tradicional é caracterizado por uma restrição mental sistemática; ele se acantona no domínio estreito que escolheu, e esforça-se por acumular o maior número possível de informações (...) concernentes a uma zona precisa e delimitada.
"Nesse contexto, a filosofia passou a ter o papel, entre outros, de recuperar a unidade do saber, de questionar a validade dos métodos e critérios adotados pelas ciências. Isto é, passou a desenvolver o trabalho de reflexão sobre os conhecimentos alcançados por todas as ciências, além da procura de respostas à finalidade, ao sentido e ao valor da vida e do mundo”. (COTRIM, 1997, : 51).
Coerência - Se há um ramo do saber que deva ser coerente, este é a filosofia. Tanto isto é verdade que, quando se pergunta o que é necessário para ser filósofo, umas das principais idéias que nos vem à mente é que se deva ter coerência. De fato, é isto que se nota nos grandes filósofos. Por exemplo: Platão ensinou muita coisa que hoje julgamos absurda. Entretanto, há algo que não se pode negar em Platão: sua coerência inquestionável.
O que é coerência? Coerência é a característica de, colocando-se determinados princípios - premissas - tirar-se conclusões pertinentes. O povo entende isto muito bem quando diz, por exemplo: “quem semeia vento, colhe tempestade”.
Para ilustrar o que seja coerência[54], apresentamos a seguinte metáfora colocada por Cirne-Lima:
A filosofia é um grande jogo de quebracabeça. No jogo de quebra-cabeça, temos que encaixar cada peça com as pedras vizinhas, de modo que os contornos de cada uma coincidam com os contornos das peças vizinhas, formando uma imagem. O jogo de quebra-cabeça consiste em inserir peça por peça, uma na outra, com ajuste perfeito de contornos, até que todas as peças estejam corretamente colocadas e a imagem final, coerente e com sentido, ficando visível. Se faltam peças, o jogo não foi jogado até o fim. Se faltam peças, o jogo foi desfalcado e a imagem final ficará incompleta... Se jogarmos até o fim, e se o jogo não estiver desfalcado de peça, todas as peças estarão, então, devidamente encaixadas, não faltarão peças, não sobrarão peças, e a imagem global estará clara e visível”. (CIRNE-LIMA, 1996 : 12-13).
Auto-correção – Diferentemente de outros seguimentos do saber, a filosofia é auto-crítica, ela se corrige a si mesma. Ela provoca sempre o eterno retorno, não dos fatos, mas dos problemas; encarna perfeitamente o Mito de Sísifo[55], vez que, na afirmação de Elie Conhen Gewerc, filosofar é repensar o que já foi pensado. A filosofia nunca chega à posse da verdade.
Aliás, disse alguém que a filosofia, ao contrário da ciência, não tem compromisso com a verdade absoluta. Seu compromisso é com a vida, acrescento eu.
. Ao final da exposição de algumas características da filosofia, temos que lembrar que não se trata bem de aprender filosofia, mas de se educar filosoficamente, e educar-se filosoficamente consiste em a pessoa encarnar estas características. Exemplos: uma pessoa que só critica quando tem critérios ou uma utopia[56] na cabeça, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que só faz generalizações fundamentadas (conhecimento), esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que examina a realidade, o fato, de todos os lados, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que não se contenta com as aparências da realidade, com seus efeitos imediatos, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que distingue as coisas, que não mistura, por exemplo, alho com bugalho, gato com lebre, direita com esquerda, etc, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Conceituação e divisão da Filosofia[57]
Ao longo de seus quase três mil anos, várias tentativas de definição de filosofia têm surgido. Inventariadas essas definições, conclui-se que elas não são unívocas - sentido único - também não são equívocas - sentido completamente diferente. Afinal são definições analógicas. Em parte, diferem e, em parte, se assemelham-se. A filosofia continua um termo polissêmico.
Para conceituar filosofia, a História muito nos ajudará.
O documento mais antigo que menciona a palavra, em sua forma verbal, é a passagem de Heródoto - século V a.C. - em que narra o encontro de Sólon com Creso, rei da Lídia. Assim o rei saudou o ateniense: “A fama da tua sabedoria chegou até mim e soube que tu, filosofando, visitaste grande parte do mundo para observar”.
Vemos que a expressão “para observar” encerra a explicação da palavra “filosofar”. O que torna Sólon um filósofo é a circunstância de viajar, não como um comerciante, ou um guerreiro que tem em vista objetivos exclusivamente práticos que se enquadram no patamar do útil externo, mas o fato de ser ele um observador. Tucídides e Isócrates (século V a.C.) usaram a palavra “filosofia”, para significar uma cultura geral, teórica, em oposição a uma cultura teórico-prática, que é própria da linguagem científica.
A seguir, damos a palavra ao tribuno e filósofo Caio Túlio Cícero - aquele mesmo que ensinou que a História é “a mestra da vida”.
Confesso - diz Cícero - que o nome ‘filosofia’ é moderno. Afirmo, todavia, que a coisa ‘filosofia’, que este nome significa, é muito antiga ... Este nome chegou até a época de Pitágoras. Tendo vindo - Pitágoras - a Fliunte, ali discutiu douta e longamente com Leonte, príncipe dos Fliaseus. Admirado por seu engenho e eloquência, Leonte perguntou a Pitágoras que arte professava.
(Pitágoras) respondeu-lhe que não sabia ciência alguma, mas que era filósofo. Ante a novidade do nome, Leonte admirado, perguntou-lhe quem eram os filósofos, e qual a diferença entre eles e os demais homens.
Respondeu-lhe Pitágoras: A vida humana se assemelha a uma feira, das que se realizam na temporada dos jogos, com grande aparato de todos os helenos. Pois nela encontramos três tipos de pessoas: uns, com exercícios de seus corpos, buscam a glória e a beleza; outros, a ela vêm em busca de ambição e dinheiro, o que conseguem através de compras e vendas; outros, enfim - de mais nobre e generosa linhagem - nem buscam dinheiro, nem aplausos, nem lucro, mas a feira visitam apenas para ver e considerar o que lá se faz e de que modo. O mesmo acontece conosco: à maneira dos que vêm à cidade para uma célebre feira, também nós que viemos a esta vida e que somos descendentes de uma natureza superior (assim nos dividimos): uns servem à glória; outros, ao dinheiro; e são muito raros os que - entre os homens - desprezando todas as coisas humanas dedicam-se ao estudo da Natureza.
Estes se chamam estudiosos da sabedoria, ou - o que é o mesmo – filósofos, e, assim, como em uma feira, é mais nobre e liberal a contemplação isenta de lucro; assim na vida, a contemplação e o conhecimento das coisas está muito acima de todos os outros empregos da atividade”. (LATERZA, 1971 : 114-115. V. I).
Muito nos ajudará a entender o que é filosofia a metáfora do quebra-cabeça apresentado por Cirne-Lima já exposta no, páginas atrás, quando, a propósito das características da filosofia, falamos da coerência
Definição de Filosofia
Para definir filosofia, talvez, melhor mesmo seja adotar uma posição negativa: é dizer o que não é filosofia. Depois de inventariar essas negatividades, o que restar é filosofia. Vamos lá: filosofia não é mito[58] (este é arquitetado somente pela fantasia); filosofia não é religião, o instrumento desta é a fé nas verdades reveladas, ao passo que a filosofia se baseia na razão; Filosofia não é ciência (de que será tratará no cap. 04); filosofia não é história, mas reflexão sobre o sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo; filosofia não é ideologia[59] (de que se tratará no cap. 05).
Quem sabe, podemos agora, numa atitude positiva, apresentar uma ou outra definição de filosofia: A primeira definição formal de filosofia foi dada por Aristóteles: “ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas”. Esta definição se tornou superada com o advento da ciência no período da Renascença. É a ciência que trata das causas. Já vimos no capítulo 01, que podemos continuar usando a definição de Aristóteles, desde que entendamos a palavra “causa” como sinalizadora de sentido, de significado.
Até o século XIX, as definições de filosofia seguiram univocamente a definição de Aristóteles, que era baseada no princípio de identidade e na imobilidade do real.
A partir dessa época, ressaltando-se cada vez mais a historicidade e sendo o engajamento considerado uma das características da filosofia, começaram a aparecer outras definições ou tentativas de definição.
A seguir relacionamos algumas dessas definições, lembrando que todas elas se referem à filosofia no sentido estrito: “Sistema lógico de idéias e conceitos, acerca da natureza, da sociedade e do homem, e do lugar deste último no mundo, tornando-o apto a assumir uma atitude diante dele”.
“ Esforço sistemático e crítico que visa a captar a “coisa em si”, a estrutura oculta da coisa, e descobrir o modo de ser do existente[60].
“ Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido”.
“ Visão de mundo para a ação”.
“Conquista da situação em que nos encontramos”.
“Disciplina que nos prepara a pensar outras disciplinas.”
“Exame auto-corretivo dos modos alternativos de dizer, fazer e agir”.
“Porta-voz e consciência de uma época”.
Encerrando este item, é bom lembrar que todas estas definições são falhas. Aliás, devemos reconhecer que a filosofia é indefinível, pois definir é colocar limites. E a filosofia não tem limites. Seu limite é a vida, é a História - um mar sem fim.
Divisão da Filosofia
Para se dividir a Filosofia, tem-se de levar em conta os diversos aspectos, sob os quais se faz a divisão:
1 - Aspecto Histórico
Sob este aspecto, a Filosofia Ocidental se divide em:
a - Filosofia clássica
b - Filosofia medieval
c - Filosofia moderna[61]
A filosofia moderna pode se dividir em filosofia mecanicista (que é estática, nada muda) e filosofia dialética (que vê a realidade com sendo dinâmica), como veremos no Apêndice).
A filosofia clássica estava preocupada na solução da antinomia “Uno x Diverso”.
A filosofia medieval estava preocupada em resolver a antinomia “Fé x Razão”.
A filosofia moderna assume a missão de desfazer equívocos provenientes da instituição e crescimento das ciências particulares: intuição versus dedução e experiência versus experimentação[62].
A filosofia clássica e a medieval tem uma visão estática da realidade, em que pese a posição diferenciada de Heráclito, Sócrates, Platão, Abelardo e outros. A realidade não muda em sua substância. A mudança, quando acontece, é acidental. Já a filosofia moderna aceita que a realidade é dinâmica. Tudo muda, também na substância. Como nem todos concebem o movimento da mesma forma, temos que fazer uma distinção na Filosofia Moderna. Uns filósofos são mecanicistas, outros são dialéticos.[63] Os primeiros concebem o movimento em sua forma retilínea, provocado por um agente externo (Deus ou a natureza). Os segundos acham que o movimento é provocado por um agente intrínseco, endógeno, chamado contradição. A contradição não é só uma característica do movimento, mas é sua própria substância. A contradição é o motor do movimento.[64]
2 - Aspecto Metodológico
Método, em filosofia, é um caminho que sempre tem um ponto de partida, ainda que nem sempre sinaliza um ponto de chegada. Assim sendo, dividir a filosofia, sob o aspecto métodológico, é apontar seus pontos de partida:
Idealismo se denomina a filosofia que tem seu ponto de partida nas idéias. Há várias espécies de Idealismos, dependendo da localização das idéias. Assunto a ser estudado no Cap. 07.
Realismo é a filosofia que coloca o ponto de partida nas coisas presentes aqui do mundo - ver como será analisado no cap. 08.
Tomismo é a versão realista da Baixa Idade Média, construída por Santo Tomás de Aquino.
Empirismo é a versão do Realismo no século XVII, construída pelos filósofos ingleses.
Positivismo é a versão do realismo no século XIX, construída por Augusto Conte - ver capítulo 09.
Existencialismo. Esta filosofia se contrapõe a todas as outras, também por um problema de origem. Enquanto todas as outras (como se viu na Introdução deste ensaio) colocam a essência antes da existência, o Existencialismo começa tudo com o existente. Primeiro as coisas existem, só depois elas são.O Existencialismo se divide em dois seguimentos:
Pragmatismo que tem como matriz a ação do homem. Esta filosofia, própria dos norte-americanos, não parte das essências, mas restringe tudo à existência da ação do homem. A essência não é importante. Ver cap. 10[65].
O Existencialismo propriamente dito tem como ponto de partida o ser existente, como se verá no cap. 11.
Dialética que será estudada no cap. 12, parte da matriz da motricidade do real.
3 - Aspecto temático
O homem é um ser condicionado - imprintado, diria Popper - para conhecer.
O conhecer - repitamos - é uma conseqüência do ser. Com efeito, como colocar o ser a serviço do homem, de maneira correta e não devastadora, como, não raro, acontece com a tecnologia, se não conhecemos o substrato da realidade, os fundamentos do real. Como, por exemplo, colocar a eletricidade corretamente a serviço do homem, se não conhecemos a natureza da eletrostática. Como colocar corretamente o ar a serviço da navegação se não conhecemos a natureza da aerodinâmica.
Sendo assim, a primeira parte da Filosofia só pode ser a Metafísica, teorizada por Aristóteles e denominada por ele de filosofia primeira, a que trata do ser. Ainda que alguns pensadores modernos e contemporâneos repilam a metafísica, é Ghirardelli quem afirma, todo filósofo, queira ou não, acaba se envolvendo com problemas metafísicos. Há dois problemas clássicos, diz ele, que ainda pertencem ao campo da metafísica. Um deles é a discussão dos universais/particulares; outro, é o da relação corpo/mente. As perguntas, a seguir, são de ordem a metafísica: “O que há na realidade que é conforme aos conceitos universais?” “Como se formam os conceitos mentais em nossa mente? (Ghirardelli, 2005 : 37). - Gnosiologia. Até o tempo de Kant, gnosiologia ( do grego gnosis = conhecimento) foi o único termo a ser usado para designar esta parte da Filosofia que trata do conhecimento. Daí para diante, começou a ser substituído pela palavra “epistemologia”, criada por Kant, para designar especificamente a reflexão sobre o conhecimento científico - a Filosofia da Ciência. Com o passar dos anos, porém, esta palavra lentamente começou a substituir aquela, e toda a teoria do conhecimento. Hoje se usa indistintamente, uma ou outra. Observe-se que estamos tratando de epistemologia como a parte da filosofia que se refere ao conhe­cimento - Teoria do Conhecimento - e não epistemologia como ciência particular que, segundo alguns, foi criada no século XX e já adquiriu maturidade científica.
- Axiologia. A axiologia (do grego axios = valor) é o termo que se presta a designar o valor da pessoa e das coisas. É a filosofia dos valores. Evidentemente, não se trata de valores comerciais e nem diretamente de valores de uso. Trata-se, isto sim, do valor das coisas, enquanto ajudam o ser humano a se realizar como pessoa, isto é, como flor da criação, como endereço necessário e absoluto de toda a natureza cósmica, como caixa de ressonância do universo, como sujeito histórico, crítico e participativo. Daqui se percebe que o termo valor está ligado à questão dos direitos e deveres.
Levando-se em conta que o homem é um ser multifacetado, multidimensional, de múltiplas determinações, como teremos a oportunidade de expor neste livro, é fácil perceber que a axiologia tem um vasto e multicolorido campo de reflexão, acarretando, assim, uma grande variedade de seguimentos e divisões.
O seguimento que trata das ações que respondem aos impulsos primários/sociais do ser humano - ações entre pessoas - chama-se Ética,[66] que é o dever de agir corretamente diante das pessoas. O bem do outro, seu crescimento, principalmente, no nível do ser mais... gente... mais... pessoa, é o critério substancial e absoluto da Ética. Esta palavra vem de ethos que, no grego arcaico, significava “casa” (onde todos vivem ou deveriam viver fraternalmente).
O seguimento que trata do valor das ações sobre a realidade - física - atendendo aos impulsos da reprodução da realidade e da criatividade, chama –se Estética que é o dever do trabalho material ou mental, único meio de transformar este mundo e colocá-lo a serviço do ser humano - dever de trabalhar, transformar, criar ou reproduzir corretamente este mundo.
O seguimento que trata das ações que respondem aos impulsos políticos de governo[67] e organização social da humanidade chama-se Política, que é o dever de governar corretamente[68].
O seguimento que trata das ações que respondem aos impulsos primordiais do ser humano em sua vocação de igualdade de defesa dos direitos e da consciência jurídica dos deveres cha- ma-se Jurisprudência, que é o dever de julgar corretamente.
O seguimento que trata das ações que respondem ao impulso, também social, de ajudar o ser humano em seu processo de “hominização”, isto é, de alcançar a plenitude da vida terrena, denomina-se Pedagogia, que é o dever de educar corretamente.
Como se pode notar, a filosofia, pelo menos, no nível do conhecer e no nível do valer, é claramente útil, pois normatiza, nem que seja à distância, as ações que, indiretamente, são vitais para uma sobrevivência plena e digna do ser humano.

CAPÍTULO 05

A Filosofia é a consciência da ciência (Montaigne)

FILOSOFIA E CIÊNCIA - FILOSOFIA, CRÍTICA E IDEOLOGIA

Dada a importância da ciência, vamos tratar, neste espaço do livro, do relacionamento entre filosofia e ciência em suas características convergentes e divergentes.
No tempo dos gregos, bem como na Idade Média, “ciência” e filosofia viviam harmonicamente. A filosofia era como o tronco da árvore cujos ramos eram as ciências. Esta intimidade era tão grande que muitos analistas chegam a negar a existência da ciência naqueles tempos. Realmente, não havia na ciência grega um processo de descoberta. Os princípios eram intuídos. Faltava o controle quantitativo e matemático das variáveis. O que havia era um processo de demonstração pela lógica silogística.
Entretanto, no Renascimento - século XVI/XVII - iniciou-se a separação entre filosofia e ciência, com a revolução científica, desencadeada por Copérnico, Francis Bacon, Galileu e Descartes. Esta revolução científica consistiu em três acontecimentos de suma importância:
1 - A criação da indução científica[69]
Até aí o conhecimento se fazia por intuição e dedução.[70]
2 - A introdução do uso dos instrumentos tecnológicos[71]
3 - A criação da dúvida metódica
Até então o argumento usado para garantir a verdade do conhecimento era a autoridade. Não se podia contradizer a autoridade. Um dos maiores méritos de Descartes é, enfrentando o autoritarismo e o dogmatismo aristotélico-tomista, ter-nos ensinado a duvidar.
Estes três fatores são tão importantes que a maioria dos pensadores afirma que a ciência propriamente dita foi criada aí - no Renascimento - pois sem a indução e quantificação dos dados induzidos, não há ciência: e isto só acontece quando se aplica a matemática ao conhecimento - o que não acontecia antes da Renascença. O mesmo se pode dizer do uso dos instrumentos de alta precisão. Por outro lado, “a dúvida metódica”, impulsionando a pesquisa experimental, impedindo que o conhecimento se estratificasse, foi de grande valia para o novo conceito de ciência.
A separação entre filosofia e ciência se tornou quase uma guerra, nos séculos XVIII e XIX; neste último, chegou-se ao ponto extremo, quando Augusto Conte decretou a morte da filosofia, substituindo-a pelo estado da positividade, da cientificidade. O que resultou naquilo que, hoje, chamamos de cientificismo[72]
O que vemos, então, é a” digladiação” entre cientistas e filósofos, com grande prejuízo para o conhecimento humano.
É pena, pois são dois conhecimentos determinados, com estatuto específico; ainda que independentes em seus níveis, são eles igualmente necessários para a humanidade. Poderíamos comparar esses conhecimentos aos dois trilhos por onde corre uma locomotiva: se estes trilhos se conservam lado a lado, sem se afastarem, mas também sem se afunilarem, só temos a ganhar com isto.
Já se disse que a filosofia é a consciência da ciência. Aqui, a bem da verdade, devemos reconhecer que a filosofia precisa da ciência. Esta se torna, cada vez mais, a rica fornecedora de matéria prima, para a reflexão filosófica. A ciência, com seu rigorismo metodológico, tem ajudado a filosofia a deixar de ser uma tribuna livre em que cada um diz o que quer, a ser menos subjetivista[73], a se afastar do “achismo” tão nefasto a qualquer conhecimento.
Ambos os conhecimentos são necessários. A filosofia compreende, a ciência explica.
Explicar, como já vimos nos capítulos anteriores, é determinar as condições de um fenômeno, é prender a realidade nas malhas de conceitos lógicos, não se preocupando com a realidade total do ser humano. Ao contrário, o termo compreensão significa muito mais. Possui uma conotação afetiva e sinaliza o ato de se colocar no lugar do outro, de compartilhar com ele, em seu fazer.
A compreensão só pode acontecer na filosofia, Philos = amigo; sophia[74] = sapientia = sentir sabor. É sentir o sabor das coisas, de sua totalidade, de sua visão onímoda (holística).
A partir do século XVII, começaram a aparecer as ciências ditas “particulares”, em contraposição à “ ciência geral” - à filosofia. As ciências emergentes se dizem particulares, porque seu campo específico é limitado. Por exemplo: a Física só trata do movimento; a Química só trata da composição dos corpos; a Biologia só cuida da vida das células nas suas ramificações imediatas; a História só cuida das ações do homem no tempo; a Sociologia, das relações entre as pessoas e grupos; a Psicologia, das estruturas mentais e do comportamento observável. Enquanto isto, a Filosofia continua tratando destas mesmas realidades, mas sob o aspecto da totalidade, radicalidade e criticidade.
A ciência, diante da realidade experimentada, formula juízos de realidade, ao passo que a filosofia, diante da realidade vivida, formula juízos de valor. Por isso, Jaspers teve condição de afirmar: Uma ciência não pode ensinar a alguém o que deve fazer, mas apenas o que pode fazer, para atingir seu fim por meios estáveis.(MILHOLLAN & FORISHA, 1972: 65-66)

A ciência é objetiva, a filosofia é subjetiva
Objeto é o que existe fora da mente. A ciência se afasta do objeto para melhor formular as leis que o regem. A filosofia é subjetiva; aproxima-se do objeto para impregná-lo de seu afeto, abraçá-lo ternamente, sentindo seu sabor” sapientia “. Platão disse que a filosofia começa com a admiração. A ciência, por ser objetiva, presume-se neutra, enquanto a filosofia procura administrar as ideologias, sabendo-se vulnerável.
A ciência é teórico-prática e a filosofia é teórico-teórica
A ciência é teórica, pois se faz com conceitos, já que, sem estes, não é possível nenhuma generalização. E as leis científicas são generalizações de coisas particulares. Entretanto, a ciência é, eminentemente, prática, pois tem como finalidade imediata, subsidiando a técnologia, procurar conforto para o ser humano.
A filosofia, por sua vez, ainda que preocupada, a longo prazo, com a vida plena do homem, é um conhecimento teórico, pois sua matéria prima são as idéias.
Identificados estes sinais diferenciadores entre filosofia e ciência, é hora de encerrar este item com uma última reflexão. A ciência navega de braçada no mar imenso da curiosidade humana; seu progresso é geométrico. A filosofia, por sua vez, desenxabida, recusada, contestada, perseguida, execrada, pulverizada, qual fênix ressurge das cinzas. Seu método mântrico é o mesmo do mito de Sísifo.

Filosofia e Crítica
Já abordamos os temas da criticidade, no cap 02, item 03 e no cap. 03, ao tratarmos das características da filosofia.(Ver Chauí, p. 18 e 23) Dada sua importância e suas conseqüências para a vida, achamos por bem tratar do assunto em capítulo especial. E como a mais importante função da crítica é descobrir o conteúdo silenciado - a ideologia - resolvemos unir neste capítulo os dois temas.
A Crítica
A palavra crítica é nova. Foi criada por Kant que se inspirou no verbo grego” crinein” que significa separar. A palavra é nova, mas a realidade coberta por ela, é tão antiga quanto a própria humanidade.
A idéia primordial da palavra crítica, é a idéia de separação. O ato de julgar é o ato supremo de distinção do ser humano. Mas para julgar é necessário separar; por isso, segundo Kant, o processo crítico começa com a separação.
A crítica contempla as duas faces marcantes da filosofia: uma negativa e outra positiva. A primeira é um não às crenças do dia-adia, aos “pré-conceitos”, aos “pré-juízos”, ao fundamentalismo, ao sectarismo, ao mecanicismo antropológico, ao cientificismo/objetivismo, “falou, tá falado”, à facticidade, à brutalidade dos fatos, ao determinismo, ao ceticismo, ao fideismo, à moral de resultados, ao estabelecido pelo poder dominante ou pela sociedade. A segunda é uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, os comportamentos, os valores, nós mesmos; uma interrogação sobre o porquê, o como disso tudo e de nós mesmos – para descobrir, esclarecer e propor mudanças A transcrição abaixo “O rei está nu” muito nos ajudará a ter uma idéia clara sobre a caracterização da crítica como processo de descoberta.
Em geral, julgamos que a palavra “crítica” significa ser do contra, dizer que tudo vai mal, que tudo está errado, que tudo é feio ou desagradável. Crítica é mau humor, coisa de gente chata que julga saber mais do que os outros. Mas não é isto que essa palavra quer dizer.
A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais: 1) capaci- dade de discernir, julgar e decidir corretamente;[75] 2) exame racional de todas as coisas sem pré-conceito e sem pré-julgamento[76]; 3) atividade de examinar e avaliar detalhadamente uma idéia, um valor, um costume, um comportamento, uma obra artística ou científica...”[77] (Chauí, 2006 : 18).
Para todos os efeitos, no entanto, o papel da crítica não é contrapor verdade[78] e erro, bem e mal, e muito menos diminuir, deprimir ou amofinar quem quer que seja. Trata-se de descobrir o conteúdo silenciado. O que não significa ainda emitir juízos de valor. Este conteúdo silenciado pode ser de um discurso; de um projeto; de uma promessa; de uma lei; de uma obra de arte: estátua, pintura, música ou qualquer coisa promovida pela ação humana.
Criticar é seguir os critérios que estão inscritos na própria visão de mundo. Ter critério é possuir uma norma para distinguir o que é adequado do não adequado, do que é aceitável do que não é, do que se deve fazer ou não fazer
A crítica segue, mais ou menos, o seguinte roteiro. Diante de um todo sincrético (confuso) cabe-nos codificá-lo e decodificá-lo (organizar para analisar). O segundo passo é o da análise: dividir em partes. Terceiro passo: vamos dar-lhe uma visão de conjunto; vamos sintetizá-lo. Notar que a síntese não é simplesmente ajuntar as partes. “A soma das partes não faz o todo”. A síntese é sempre um conhecimento compreensivo que somente a filosofia pode oferecer, dada sua visão de totalidade tanto da parte do objeto como, sobretudo, da parte do sujeito, que se investe todo nesta ação. A síntese é uma totalização objetiva e subjetiva.
Ao perfazer essa travessia, separando e refazendo, a crítica, porém, vai cumprir uma missão muito árdua: ler nas entrelinhas, fazer um trabalho de escavação para encontrar o conteúdo silenciado; silenciado de propósito, ou inadivertidamente. Ao realizar este trabalho, a crítica pode encontrar “uma obra de pensamento”, na expressão de Marilena Chauí, isto é: algo bom que vai enriquecer a personalidade cultural do crítico. É o tesouro do saber. Mas, geralmente, o que a crítica vai encontrar é um conteúdo silenciado, de propósito, para enganar, visto não apresentar a gênese do processo. A crítica, então, encontrou uma ideologia no sentido marxista, como veremos nos próximos passos..
. Por outra, criticar é conhecer a realidade, melhor dizendo, é mostrar a nudez da realidade.
A propósito, vamos contar a seguinte Estória, extraída de Claudino Pillet, p. 13-16:
“O rei está nu”
Há muitos anos, vivia um rei que gostava muitíssimo de roupas novas e bonitas. Tinha um traje para cada hora do dia. A grande cidade onde ele residia era alegre e movimentada; todos os dias ali aportavam muitos viajantes. Um belo dia, chegaram dois trapaceiros que, fazendo-se passar por tecelões, anunciaram que sabiam tecer panos maravilhosos. Não só as cores e os padrões de seus tecidos eram algo fora do comum como também as roupas, com eles feitas, tinham um extraordinário predicado: o de se tomarem invisíveis para as pessoas que fossem simplesmente néscias.
Que roupas formidáveis! - disse de si para si o rei. - Fazendo-as vestir, eu poderia saber que homens, no meu reino, não servem para o cargo que ocupam. Poderei, também, distinguir os sábios dos néscios. Quero que esses panos sejam imediatamente tecidos!
“E deu desde logo muito dinheiro aos dois trapaceiros, para que começassem, sem perda de tempo, a trabalhar.
Os dois montaram dois teares, fingiram trabalhar, mas não tinham fio nenhum no aparelho. Pediram as sedas mais finas e o ouro mais puro, que meteram no próprio saco e, pela noite adentro, trabalharam nos teares vazios.
‘Bem gostaria eu de saber até que ponto adiantaram o tecido’, pensou o rei. Teve, porém, uma sensação esquisita ao pensar que os néscios e os que não estavam à altura dos seus cargos não podiam ver o pano. Imaginava, naturalmente, que por si próprio, nada deveria temer, mas, por via das dúvidas, preferiu mandar primeiro outra pessoa, para ver como iam as coisas. Todos os habitantes da cidade já sabiam da maravilhosa virtude que aquele tecido possuía e ansiavam por ver quanto o vizinho era tolo ou incompetente.
Vou mandar meu velho e honrado ministro ver os tecelões - pensou o rei. - É quem melhor poderá ver como está o tecido, pois é homem inteligente e ninguém serve melhor que ele para o seu cargo.
O velho e honesto ministro entrou na sala onde os dois trapaceiros trabalhavam nos teares vazios.
Meu Deus do céu! - murmurou o velho ministro, arregalando os olhos. - Eu nada vejo! - Mas não o disse a ninguém.
Os trapaceiros pediram mais dinheiro, mais seda e mais ouro, a fim de prosseguirem com o trabalho. Meteram tudo nos bolsos, e para os teares vazios não foi um só fio. Nele os espertalhões continuaram a fingir que teciam.
O rei não tardou a enviar outro alto e honrado funcionário, a ver como ia o serviço, se faltava muito para a conclusão do tecido. Aconteceu-lhe o mesmo que ao ministro: o homem olhou e tomou a olhar, mas como só havia teares vazios, ele nada mais pôde ver.
Mas, pôs-se a elogiar o tecido que não via, manifestando sua satisfação ante tão belas cores e tão gracioso padrão.
O rei quis, então, ver com os próprios olhos a fazenda, enquanto ela ainda estava no tear. Com um grande grupo de homens escolhidos, do qual faziam parte os dois velhos e honrados funcionários que antes lá haviam estado, foi ele à sala onde os dois trapaceiros teciam, incansavelmente, sem um só fio de linha.
Então, não é magnífico! – exclamaram, ao mesmo tempo, os dois altos funcionários. - Queira Vossa Majestade ver que padrões. Que lindas cores!
E apontavam o tear vazio, pois acreditavam que os outros deviam estar vendo o tecido.
‘Não é possível!’, pensou o rei. ‘Eu nada vejo! Isso é horrível! Serei tão estúpido, ou simplesmente não servirei para ser rei? Seria a pior coisa que me poderia acontecer!’
É, de fato, muito belo - disse ele. - Tem minha inteira aprovação! E sacudiu satisfeito a cabeça, contemplando o tear vazio.
Não queria dizer que nada via. Os numerosos componentes da comitiva, sem exceção, olhavam, mas, por mais que o fizessem, nada logravam ver. Secundaram, porém, o rei em seus elogios.
Como é bonito! - diziam, aconselhando o rei a mandar fazer um traje daquela magnífica fazenda e a usá-la, pela primeira vez, na grande procissão que iria realizar-se dali a dias.
Magnífico! Esplêndido! Formidável! - eram as exclamações que se ouviam, de boca em boca.
O rei condecorou os dois trapaceiros e deu-lhes o título de Cavaleiros do Tear.
Os trapaceiros passaram, em claro, a noite que precedeu a manhã da procissão, com dezenas de luzes acesas. Todos podiam ver que trabalhavam febrilmente, empenhados em terminar as roupas do rei. Fizeram de conta que retiravam o pano do tear e o cortavam no espaço com grandes tesouras, costurando-o com agulhas sem linha.
As roupas estão prontas! - anunciaram por fim.
O rei compareceu ao local, acompanhado por seus mais nobres cavaleiros. Os dois trapaceiros ergueram o braço, fingindo segurar alguma coisa.
Aqui estão as calças. Cá está o casaco. E aqui, o manto - disseram. - O tecido é tão leve como teia de aranha. Parece que não se tem nada no corpo. Nisso está a grande virtude dele ...
O rei tirou a roupa, e os trapaceiros fingiram dar-lhe, peça por peça, o traje novo.
Como ficam bem! São esplêndidos estes novos trajes! Que padrões! Que cores! - era o que se ouvia ao redor.
E assim o rei desfilou na procissão, enquanto nas ruas e nas janelas todos comentavam:
Meu Deus, como são lindos os novos trajes do rei! Como lhe ficam bem!
Todos dissimulavam, ocultavam que não estavam vendo coisa alguma, pois do contrário, teriam passado por imprestáveis para o cargo que ocupavam, ou se revelariam néscios. Nenhuma roupa do rei havia despertado tanta admiração.
O rei está nu! - disse uma criança.
Meu Deus! Falou a voz da inocência! - disse o pai da criança. E cochichou para outro o que a criança dissera.
Ele está nu - correu de boca em boca. - Uma criança está dizendo que ele está nu.
Ele está nu! - clamava, por fim, todo o povo.
O rei sentiu um abalo, pois lhe parecia que falavam a verdade. “Agora tenho que agüentar, até o fim, a procissão - murmurou ele - Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes, continuaram a segurar o manto que não existia”.
.
Filosofia e Ideologia
No item anterior, vimos que a crítica exerce a função de desnudar a realidade, descobrir a gênese do processo ou o conteúdo do silenciado. Pois bem, o “conteúdo silenciado” nada mais é do que a própria ideologia. Qual o conceito de ideologia? Qual sua função? É o que veremos agora.
Como a palavra crítica, ideologia é também uma palavra nova. Foi criada ao tempo de Napoleão, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, para significar a ciência das idéias, compreendendo seu estudo e seu desenvolvimento. Posteriormente assumiu outros sentidos.
Concepção geral de ideologia
No sentido amplo, ideologia é o conjunto de idéias, doutrinas, concepções e opiniões sobre algum ponto polêmico. Ideologia é conjunto sistemático de conhecimentos intencionalmente destinados a orientar ações imediatas[79]. Neste sentido, se enquadram as seguintes perguntas, entre outras: Qual é a ideologia desta escola? Qual a ideologia desse partido?
Concepção estrita de ideologia
Marx teve um mérito muito grande para a evolução histórica e semântica da palavra ideologia. Deu-lhe um conteúdo conceitual de ordem econômica e política. Ainda é uma caracterização imperfeita, pois reduz a amplitude existencial do homem à esfera do econômico e do político. Mas este passo inicial teria que ser dado.
Nesta perspectiva, a ideologia é uma consciência invertida[80] da realidade, elaborada pela classe dominante, com a finalidade de mascarar a divisão de classe, mantendo assim a situação vigente de dominação. Nesta visão, a ideologia é algo inteiramente negativo e insidioso.
A citação, abaixo, de Marilena Chauí, é uma explicitação e atualização do pensamento marxista.
O que é ideologia?[81]
...ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, e que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade, dividida em classes, uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. (CHAUI. 1980 : 113).
Nesta citação, identificamos as seguintes proposições explícitas ou implícitas, sinalizando que: a) ideologia não é mentira. Mentira é pensar uma coisa e dizer outra[82]– nela não há representação; b) ideologia é um discurso lógico, sistemático e coerente; c) ideologia é prescritiva: impõe o que se deve pensar e como se deve pensar, o que se deve valorizar e como se deve valorizar, o que se deve sentir e como se deve sentir, o que se deve fazer e como se deve fazer; d) ideologia assegura a coesão social e a aceitação, sem críticas, das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da “vontade de Deus” ou do “ dever moral” ou como decorrência da ordem natural das coisas; e) a ideologia tem a função de justificar as diferenças sociais, sem jamais atribuí-las à divisão de classe – que é o conteúdo silenciado (no caso propositalmente, para enganar).
Glosando o texto de Marilena Chauí com as idéias de Pierre Furter p. 51-60 - Maria Lúcia Aranha, p. 61-68, Gilberto Cotrim, p. 56-61, podemos relacionar, na perspectiva mar-xista, as seguintes características nefastas da ideologia:
Naturalização: considerar como obra da natureza, situações que, na realidade, são pro-duzidas pela ação humana e, como tal, são situações históricas e não naturais: quando, por exemplo, se considera-se natural que a sociedade seja dividida entre ricos e pobre, ou que uns nasceram para mandar e outros para obedecer
Anterioridade: em razão desta anterioridade, deste apriorismo, como assinala muito bem o texto citado, a ideologia predetermina o pensamento e a ação, desprezando a situação histórica, a realidade social vigente e a prática, na qual cada pessoa se insere, vive e produz. È em nome desta anterioridade e deste apriorismo que se introduz no imaginário do povo a concepção de que as idéias caem do céu, ou são gestadas nas cabeças de pessoas privilegiadas, quando, na realidade, sua matriz é a luta do ser humano para conseguir sua subsistência. Generalização (abstração): Aqui temos duas linhas de raciocínio: a) a ideologia tem como finalidade produzir um consumo coletivo em torno a certas idéias, valores, normas, regras e preceitos. Com isto, generaliza para toda a sociedade aquilo que corresponde aos interesses específicos dos grupos ou das classes dominantes; b) a ideologia desvincula as idéias do plano real para o plano da abstração. Quando se diz: “o trabalho dignifica o homem”, isto é uma abstração, pois não está de acordo com a realidade. Quando se faz afirmação desse tipo, é que se desconhece (geralmente de propósito) a gênese do processo, pois o trabalho alienado ou do “bóia-fria” não dignifica ninguém..
Lacuna.
“...a ideologia desenvolve-se sobre uma lógica construída na base de lacunas, omissões, de silêncios e de saltos. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar, falsear em vez de esclarecer, esconder em vez de descobrir. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas ‘verdades’ devem parecer[83] naturais, plenamente justificadas, válidas para todos os homens e para todo e sempre”.
“A lógica ideológica só pode manter-se pela
ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois, sendo missão da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria”. (CONTRIN, 1997 : 57-58).
Exemplo de lacuna: “Todos têm direito à educação”. O discurso não diz que esse “todos” só se refere aos que possuem condições de subsistência não só material mas cultural.
Essa afirmação é lacunar, ao apresentar como universal aquilo que não beneficia a todos: os pobres, por diversos motivos, acabam ficando de fora. Por muito lógicas que sejam as justificações que se dêem, o que permanece oculto é que há contradição entre os que, com seu trabalho, produzem a riqueza material e cultural e os que se apossam dessas riquezas. Portanto, analisando a gênese do processo, descobre-se que a educação está restrita, em grande parte, aos que detêm o poder.
Alienação: o conceito de alienação tem vários sentidos. No sentido jurídico, alienada é a pessoa que perde a posse de um bem ou de um direito; para a psiquiatria, é a pessoa que perde a dimensão de si na relação com os outros; no sectarismo, radicalismo e idolatria, perde-se a autonomia. Etimologicamente, alienação vem do latim “alienare” → “alienus” que pertence ao outro; “alius” é o outro. Alienar é transferir para o outro aquilo que é seu.
Para os neo-marxistas, alienação é o estado da pessoa que retira as explicações de sua situação, não do mundo objetivo, mas de um mundo que não existe ou é transcendente. A alienação desvia os dominados de encontrar a gênese do processo, de ter uma consciência correta da realidade. Sua consciência da realidade é invertida, por imposição da classe dominante. Como exemplo, poderíamos aduzir a seguinte pergunta: qual a causa de sua pobreza? Geralmente as pessoas não sabem identificar a verdadeira causa de sua situação, colocando-a onde ela não está: porque Deus não quis, ou, porque não gosto de trabalhar, ou, não sei administrar; quando sabemos que a causa, na maioria absoluta das vezes, está na sociedade exclusivista, competitiva, dominadora.
Mito e Mistificação: Mito aqui é tomado em sua concepção popular, isto é, como meio de levar a pessoa ao terreno do imaginário puro[84]. Mistificação vem de mistério; é tornar uma coisa misteriosa, inacessível ao comum dos mortais.. Tanto o mito quanto a mistificação produz a fuga dos verdadeiros problemas e de suas adequadas soluções. Exemplo de mito: riqueza, prazeres, conforto, como fatores únicos de felicidade; globalização, livre mercado como solução para os problemas humanos. Exemplo de mistificação: democracia[85] é regime político para os deuses e não para os homens, filosofia é só para os inteligentes. Falta de chuva é um mistério, logo, vamos rezar para chover, pois só Deus pode desvendar mistério.
Coisificação: A coisificação tem dois sentidos:
a - tratar o homem como coisa. Exemplo: Ronaldinho é Nike. Sua saúde não tem importância diante do prejuízo da Nike[86]
b - transformar o provisório em permanente. Exemplo: ”o mercado resolve tudo”; ou a corrupção nasceu com o Brasil, logo...
Inversão causa e efeito: Exemplo: “A preguiça causa a pobreza”. A psicosociologia mostra o contrário.
Supervalorização da teoria ou inversão da relação teoria/prática:
Numa visão praxeológica do mundo, a prática está impregnada de teoria. Ambas estão em pé de igualdade, tendo o mesmo valor.[87]
Pois bem, a ideologia, no afã de mascarar a realidade, coloca a teoria acima da prática. Se a teoria é a iluminadora da prática, como ensinara Kant, ela é mais importante do que a prática; sendo a prática mera aplicação da teoria – é o que insufla a ideologia. Exemplo: “dificilmente você encontra a estátua de um operário nas praças, em contraposição, de intelectuais, se encontram muitas”. A tese de que as idéias movem o mundo é altamente ideológica.
Concepção de ideologia na visão de Gramsci
A posição de Antonio Gramsci não é excludente à de Marx, mas complementar. Ele distingue duas espécies de ideologia: ideologia arbitrária e ideologia orgânica. A primeira é a própria concepção de Marx, já exposta. Quanto à segunda espécie de ideologia, Gramsci julga-a historicamente necessária porque ‘organiza as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.
Nesse sentido – pondera Gramsci – a ideologia se manifesta “ implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas e que têm por função conservar a unidade de todo o bloco social”[88]
Concepção de ideologia na visão de Mannheim
Em sua importante obra Utopia e Ideologia publicada pela primeira vez em 1928, este famoso sociólogo distingue duas espécies de ideologia: particular e total. A ideologia particular se identifica com a conceituação de Marx. .
Como ideologia total, Mannheim entende “um conjunto de idéias que mantêm a ordem estabelecida”, em que não entra nenhum juízo de valor. É um fato social que não foi elaborado nem por um indivíduo, nem por um grupo de intelectuais, como no caso da ideologia particular, mas que, muitas vezes, existe como consciência possível da realidade.
Tanto na perspectiva de Gramsci quanto na de Mannheim, a ideologia oferece algumas qualidades que passamos a explicitar. Primeiramente, podemos dizer que ela favorece o diálogo. Por ser provisória, a ideologia permite um diálogo proveitoso “aqui e agora”, tendo em vista a prática imediata. Em que pese ser uma interpretação provisória da realidade, ela ajuda a entender a ação e nos induz, ou, pelo menos, sugere um engajamento nela. Neste sentido, a ideologia seria uma aposta, um risco, mas um risco necessário. Não se proceder assim, males piores poderiam advir.
É neste sentido que dizemos que Partido Político bom é aquele que é guiado por uma ideologia. Neste sentido, também, Gazuza pôde cantar: “Quero uma ideologia para viver”.


CAPÍTULO 06

O filósofo é crítico, embora não seja desesperado da verdade, recusa todas as certezas (Rouanet)

FILOSOFIA E EDUCAÇÃO

Ao final do capítulo III, afirmamos que não se trata propriamente de aprender filosofia, mas de se educar filosoficamente. Esta afirmativa já aponta a íntima relação entre Filosofia e Educação. São irmãs gêmeas. Nasceram ao mesmo tempo. Sempre tiveram o mesmo objetivo: proteger e desenvolver a plenitude da vida. Com efeito, Filosofia e Educação sempre andaram juntas desde os primórdios da Filosofia e da Escola: “uma, como interpretação teórica das aspirações, desejos e anseios de um grupo humano; a outra, como instrumento de veiculação dessa interpretação”. (LUCKESI, 1992 : 32).
(...) “Assim sendo, não há como se processar uma ação pedagógica sem uma correspondente reflexão filosófica. Se a reflexão filosófica não for realizada conscientemente, ela será sob a forma de ‘senso comum’, assimilada ao longo da convivência dentro de um grupo. Se a ação pedagógica não se processar a partir de conceitos e valores explícitos e conscientes, ela se processará, queiramos ou não, baseada em conceitos e valores que a sociedade propõe a partir de sua postura cultural.
Quando não se reflete sobre a educação, ela se processa dentro de uma cultura cristalizada e perenizada. Isto significa admitir que nada mais há para ser descoberto em termos de interpretação do mundo. É propriamente a reprodução dos meios de produção.[89] (...) Nas relações entre Filosofia e Educação, só existem duas opções: ou se pensa e se reflete sobre o que se faz, e assim se realiza uma ação educativa consciente; ou não se reflete criticamente, e se executa uma ação pedagógica a partir de uma concepção mais ou menos obscura e opaca, existente na cultura vivida no dia a dia, e assim se realiza uma ação educativa com baixo nível de consciência”. (idem, p. 32)
Essa ligação entre Filosofia e Educação, é uma constante a partir de Sócrates. Este educador - considerado o maior mestre do Ocidente - mantinha tanta intimidade com a Filosofia, que criou um de seus mais importantes ramos - a antropologia. Seu método didático da “maiêutica” decorre de sua convicção filosófica de que as idéias estão adormecidas no interior das pessoas, devendo ser despertadas pela ação pedagógica.
Em Platão, não saberíamos distinguir bem o filósofo, do educador. Ele, ao lado de Isócrates, é apontado como criador do tipo de escola que temos até hoje e que, em sua prática pedagógica, Platão chamou de “Academia”. Este filósofo escreveu a República, que é considerado um dos mais importantes livros de pedagogia de que se tem notícia.
Aristóteles, em sua obra Arte Retórica e Poética, trata profundamente da educação. O mesmo se diz dos pensadores romanos: Cícero, Sêneca, Quintiliano, Plutarco, para citar os principais.
Entre os filósofos medievais, lembramos Santo Agostinho com seu De Magistro e Santo Tomás de Aquino que, no século XIII, escreveu, com o mesmo título, uma importante obra pedagógica.
Todos os filósofos foram educadores. É o que podemos constatar, pelo menos, até o século XIX. Além dos nomes lembrados, poderíamos continuar a lista, sem excluir: Locke, Kant, Rousseau, Hegel, Marx, Gramsci, Vieira Pinto, Anísio Teixeira, Paulo Freire e Saviani.
Essa intimidade só veio a se enfraquecer com a criação das chamadas “ciências sociais e humanas”, a partir do fim do século XVIII.. De fato, estas são indiscutivelmente indispensáveis à educação e só se tomam intrusas quando se arrogam o direito de substituir a filosofia. É assim que comçam a aparecer os “sociologismos”, os “psicologismos”, os “biologismos”, os “economicismos”, etc.
Filosofia e Educação estão ligadas. Fato que leva Walter Kohan a afirmar a propósito do Projeto de filosofia para criança de Mathews Lipman: “Concordamos com Lipman em que tanto a filosofia é uma dimensão insubstituível da educação quanto a educação é uma dimensão in-substituível da filosofia. Sem sua projeção educacional, a filosofia se torna vazia; sem sua dimensão filosófica, a educação se torna cega”. (KOHAN, Opus cit. p. 120).
Em vista disto, Luckesi também conclui: “Não há como fugir dessa ‘fatalidade’ da nossa existência. Assim sendo, parece-nos mais válido e mais rico, para nós e para a vida humana, fazer esta junção de maneira consciente, como bem cabe a qualquer ser humano. É a liberdade no seio da necessidade”. (LUCKESI, Opus cit, p. 33).
O fenômeno educacional, do ponto de vista epistemológico, é muito complexo. Em sintonia com os textos transcritos, podemos dizer que não é possível tratá-lo do mesmo modo como é tratado nas ciências. Estas não possuem um acervo categorial para a construção/apreensão de seu objeto. A aproximação do fenômeno da educação exige uma abordagem no mínimo interdisciplinar (hoje caminhamos para a transcultura e a transdisciplinaridade). Esta interdisciplinaridade (transdisciplinatidade) é tecida pela reflexão filosófica. A filosofia não substitui os conteúdos significantes elaborados pela ciência. Ela, como que os articula, instaurando uma comunidade construtiva de sentido, gerando uma atitude de abertura à interdisciplinaridade (transdisciplinaridade).
Apesar da clareza e contundência dos argumentos aqui exarados para mostrar o casamento natural entre Filosofia e Educação, vamos colocar três linhas de raciocínio, além da história que já foi largamente lembrada.
Questão temática e teleológica
O objeto tanto da Filosofia como da Educação é o ser humano. Ao tratar de outros temas, sua preocupação é o homem. Na perspectiva do homem, ambos tratam da realidade no aspecto da totalidade, radicalidade e criticidade.
Para ambas, estão sempre presentes as indagações: o educando, quem é, o que deve ser, qual seu papel no mundo; a sociedade, o que é ? O que pretende? Qual deve ser a finalidade da ação pedagógica? Estas são indagações que emergem da atividade educacional dos povos para a reflexão filosófica, no sentido de que estabeleça pressupostos para aquela.
Um desses pressupostos - e o mais importante - é saber que tipo, que imagem de homem eu pretendo conseguir em minha prática educativa. Sabemos que as ciências particulares não são capazes de fornecer uma íntegra e autêntica imagem do homem. Senão vejamos: a Física só está preocupada com a força que, no homem, provoca o movimento; a Química está preocupada com a constituição dos corpos; a Biologia só se interessa pela estrutura e vitalidade das células; a História está preocupada com as ações do homem no tempo; a Geografia com as ações do homem no espaço; a Sociologia, com as ações entre as pessoas e grupos; a Psicologia, com a estrutura e comportamentos psíquicos das pessoas; a Economia, com a sobrevivência material dos povos. E assim por diante.
Inventariadas todas as contribuições das ciências, o que temos? Um aglomerado de pe-daços da imagem do homem, não o homem em sua dimensão integral ou seja, um homem pela metade, um mostrengo de homem.
As ciências humanas têm status próprio na Pedagogia. Status soberano e não subalterno. Acontece, porém, que só a filosofia no seu impulso de visão total, onímoda, “holística” pode fornecer uma imagem integral do ser humano. Esta idéia da importância da filosofia para a Educação é tão cristalina que Anísio Teixeira[90] não teve pejo de declarar: “Creio que em educação sempre haverá mais necessidade de filosofia do que de ciência”. (PAGANI, p. 19). O mesmo Anísio, em 1950, diz mais ou menos o seguinte a propósito da formação de professores:
“Contudo, antes de formar bacharéis, seria necessário formar ‘pequeninos Sócrates’, isto é, crianças e jovens que não apenas fossem talhados para o trabalho profissional, como também tivessem aguçada sua inteligência para que compreendessem as ‘incertezas do mundo complexo e mutável’, desenvolvessem a tolerância e contribuíssem para o enriquecimento e o ‘progresso da existência humana’ (PAGANI, 22).[91]
Anísio Teixeira foi discípulo de Dewey, um dos criadores da filosofia pragmatista, que tentou introduzir na educação brasileira. O texto citado dá a entender que Anísio absorveu bem a filosofia pedagógica do grande educador norte-americano.
Walter Kohan, em sua vasta obra de defesa da filosofia para crianças, recorre com freqüência ao pensamento de Dewey. Vejamos algumas passagens:
Ele propôs considerar a escola como um espaço de construção social do pensar e de formação e exercício da capacidade de julgar das crianças e não como um lugar de transmissão de conhecimento... Neste sentido, o melhor que uma escola pode fazer por seus alunos é desenvolver sua habilidade de pensar”. E conclui Kohan: “Para Dewey, existe uma disciplina que cultiva o pensar, no que o diferencia do conhecer, a filosofia[92]
Sobre a relação entre filosofia e educação, muita coisa Matheus Lipman tem a dizer, além do que já foi colocado a propósito da interdisciplinaridade. É o que veremos:
Há um século e meio atrás, Eduardo Hanslick formulou sua famosa tese de que a música é única entre as artes, porque, na música, forma e conteúdo são uma só coisa. Seja como for, pode-se efetivamente argumentar que a filosofia é a disciplina cuja forma e pedagogia são uma só coisa. Até onde isto for assim...a filosofia fornece um modelo formidável para o processo educacional como um todo”
Até a pouco tempo discutia-se o acerto do método ontogenético em que se colocava a antinomia: forma ou conteúdo? Sujeito ou objeto?[93]
A finalidade da escola é formar investigadores[94], entretanto...
“O estudante que aprende apenas os resultados da investigação não se torna um investigador, mas um estudante instruído. Esta alusão aponta para um dos propósitos educacionais da filosofia: todo estudante deve tornar-se um investigador. Para a realização desta meta não há melhor preparo que o que é dado pela filosofia... A educação nas outras disciplinas não envolve tanto conhecimento quanto aprender, quanto aprende a pensar uma disciplina – pensar historicamente, fisicamente, antropologicamante, matematicamente, etc. A filosofia implica aprender a pensar sobre uma disciplina e, ao mesmo tempo, aprender a pensar autocorretivamente sobre nosso pensar”. (LIPMAN, 1990 : 59)
Para maiores esclarecimentos sobre este tema, recomendamos o livro de Mathew Lipman, A Filosofia vai à Escola, sobretudo o capítulo 03
Um princípio em que muito vamos insistir é que: tal a antropologia, tal a pedagogia - tal o princípio antropológico, tal o princípio pedagógico. Conforme a concepção que eu tenho do homem, assim será a instrumentalidade que devo usar para educá-lo. Repetindo, tal o tamanho do homem, tal será o tamanho da educação. Exemplo: se o homem é só um animal, vou educá-lo como animal. Se é um anjo, vou educá-lo como anjo. Sem a contribuição da Filosofia, a educação será um aparato inútil: é como uma rede de náilon para pescar baleia ou uma rede de tarugo para capturar borboletas. Alguém me promete como presente de Natal um filhote de pequinês; construo um canil apropriado; eis que no Natal, recebo um buldogue adulto; onde vou abrigá-lo ?
Outro pressuposto para a educação é a questão dos conceitos, das categorias. Não é a ciência que cria os conceitos e as categorias. Esta criação é obra da Filosofia. Como se pode falar de educação sem o domínio de conceitos, tais como: conhecimento, sujeito, objeto, essência, existência, natureza, substância, acidente, finalidade, etc.
Outro pressuposto para a educação - dominar as habilidades de pensamento, de investigação. A educação exige tais habilidades e só a filosofia poderá fornecê-las.
Outro pressuposto - a interdisciplinariedade. É necessário todo esforço para eliminar o “fantasma diplomado”. Nada de preparar o aluno para se transformar, no fim do curso, numa espécie de cabide de conhecimento. Numa haste do cabide está uma disciplina, noutra haste, está outra disciplina, naquela outra mais uma disciplina. Temos ao final, não um ser humano integralizado, em que as disciplinas estão assimiladas e encarnadas, mas, sim, um “espantalho” fantasiado de conhecimentos. Conhecimentos estanques que se perdem logo depois da azáfama da formatura.
Pois bem, só a Filosofia pode contribuir para a integração destas disciplinas na formação do homem integral, onímodo, “holístico”, sábio, douto, culto e consequentemente preparado para exercer uma profissão.
Ratificando estas posições, oferecemos a transcrição de outra importante obra do professor Lipman, intitulada O Pensar na Educação, p. 381:
“A filosofia estimula o pensamento nas disciplinas, pois assume a responsabilidade de ensinar os aspectos genéricos do pensamento, que ocorrem em qualquer disciplina, e porque é um modelo daquilo que significa para uma disciplina refletir sobre e (sic) ser crítica da sua própria metodologia. A filosofia sempre considerou axiomático que o curso não analisado não merece ser dado, apesar de, muitas vezes, não ser capaz de funcionar de acordo com os seus axiomas.

A filosofia estimula pensar sobre as disciplinas, pois um dos seus principais métodos de operação é a “filosofia” do curso: a filosofia da matemática, a filosofia das ciências sociais, a filosofia da linguagem e assim por diante. Na realidade, a “filosofia do curso” freqüentemente revela aspectos inerentes à metodologia de uma disciplina, sobre a qual os profissionais daquela disciplina não têm plena consciência.
A filosofia estimula o pensamento entre as disciplinas, a fim de impedir o provincianismo, que, muitas vezes, acompanha a especialização profissional. A mente superespecializada é o que há de pior na vida acadêmica, e precisamos da persistente advertência interdisciplinar, que a filosofia representa, para fazer com que percebamos que aquilo que ocorre nas linhas divisórias entre as disciplinas é, no mínimo, tão importante ao que acontece dentro delas.

Finalmente, necessitamos da inflexão da filosofia em relação à questão que, quando falamos de investigação, não nos referimos somente à investigação científica, e, quando falamos de metodologia, não nos referimos somente à metodologia científica. Existem também as investigações artísticas, humanísticas, filosóficas[95], profissionais - cada qual com sua própria dimensão metodológica. Os alunos precisam se familiarizar com toda esta dimensão ou ordem das coisas e não apenas com alguns dos seus elementos”.
Questão metodológica
Como já se lembrou, a filosofia é a expressão dos anseios e dos desejos, das aspirações de uma época, e a educação é meio para veicular estas aspirações. Quer dizer que a educação é o método da filosofia.
De outra parte, somente a filosofia é capaz de resolver os aspectos fornecidos pelas ciências humanas e constituir uma totalidade que não se resume na soma das partes. A filosofia leva à articulação dialética dessas partes, entre si e com o todo, sem perder sua especificidade, ao totalizar, ao unir, ao relacionar.
O fenômeno educacional é muito complexo. Não é possível tratá-lo do mesmo modo que é tratado nas ciências. Como se afirmou anteriormente, estas não possuem um acervo catego-rial para a construção/apreensão de seu objeto.
A aproximação do fenômeno da educação exige uma abordagem multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, como também já foi lembrado. Ora, tudo isto é tecido pela reflexão filosófica. A Filosofia não substitui os conteúdos significadores, elaborados pelas ciências. Ela como que os articula, instaurando uma comunidade construtiva de sentido, gerando uma abertura à intersubjetividade. A educação é um fenômeno não só objetivo, não só subjetivo, mas intersubjetivo.
Encerrando este capítulo, poderíamos dizer que, se a educação é o método genérico da filosofia, esta, por sua vez, é o método genérico das ciências, isto por causa de sua largueza totalizante, podendo, assim, formular hipóteses de mais longo alcance, levando a uma visão mais abrangente e integrada do ser humano - Tudo isto é uma questão de método. Encerrando esta primeira parte de nosso ensaio, damos por finda nossa pretensão de apresentar uma meta-filosofia ou uma proto-filosofia. Na segunda parte, pretendemos entrar na filosofia propriamente dita, estudando as seis escolas filosóficas que julgamos mais importantes para o ser humano em seu processo histórico de hominização.

[1] Sabemos que em um tratado de filosofia, seria bisonho divagar sobre sua conceituação, mesmo porque, segundo Deleuze e Guattari, conceito não exprime essência, mas acontecimento. Assim, haveria tantos conceitos de filosofia quanto os acontecimentos filosóficos. Entretanto, em uma introdução à filosofia endereçada também a principiantes, reputo de bom alvitre uma tentativa neste sentido.
[2] Se é verdade a afirmação dos filósofos Gadamer e Derridá de que o intérprete é mais importante do que o autor dos textos, certamente, ao proceder assim, estamos em bom caminho.
[3] Hominização, termo criado por Telhard de Chardin para significar o processo de o ser humano crescer, se tornar pessoa, à estatura de Jesus Cristo, ou o processo de completude do ser humano.
4 Médico e pensador, Jaspers foi muito perseguido pelo Nazismo por se recusar a entregar sua esposa Annah Arend, também filósofa, que era judia.
[6] Sócrates adotou como lema de sua filosofia esse dístico gravado no frontispício do templo de Delfos. Procedimento que é a própria realização da filosofia (Kohan, v. VI: 57)
[7] Ewin é prof. De Filosofia da Universidade de Cambrdge na Inglaterra..
[8] Segundo a qual o universo é uma máquina que pode ser explorada até ás raias do sucateamento
[9] Descartes afirmou que o corpo é uma máquina guiada pela alma. A Newton se tornou fácil aplicar esta intuição ao todo do universo. Hoje, felizmente, estamos voltando á concepção orgânica do universo, vigente até a era descarteana, única que nos poderia salvar da catástrofe ecológica
8 A Moral é a parte da filosofia que tem a finalidade de, para proteger a vida, regular as ações entre as pessoas, na tentativa de recuperar a igualdade entre elas.
[11] Hoje quando lemos em Marx que não podemos somente pensar o mundo, entenda-se, Marx nunca propôs a prática pura, mas sim a práxis que é a integração de teoria e prática.
[12]Com este repto, no Primeiro Congresso Latino de Filosofia da Educação, o então Presidente do Conselho Nacional de Educação, Prof. José Antonio Teixeira, começou seu célebre discurso sobre Anísio Teixeira: de Dewey a Darcy Ribeiro.
[13] Na América Latina, temos o fato dos Astecas e dos Incas que, apesar de possuírem uma alta cultura superior a dos europeus, não tiveram a mesma sorte dos gregos, pois foram inteirainteiramente esbulhados de sua cultura. O que os europeus não conseguiram transportar para Europa, eles enterraram
[15] O arqueólogo Teilhard de Chardin, na década de sessenta criou esta palavra para sinalizar o processo de crescimento do ser biológico do homem para a sua plenitude como ser humano. O filósofo Richard Rorty fala do processo de produção de “versões melhoradas de nós mesmos”.
[16] Walter Kohan é argentino, com doutoramento na Universidade do México, com tese sobre Michel Foucault, foi professor de filosofia da educação e coordenador da área “filosofia na escola”, da faculdade de educação da UNB. É presidente do Conselho Internacional para Investigação Filosófica com Crianças e Jovens. Transferiu-e posteriormente para o Rio de Janeiro.
[17] Lipman é um filósofo e educador norte-americano, que apresentou a melhor proposta de iniciação filosófica para criança. Ainda que devamos fazer restrições à sua filosofia que não aponta o vetor da transformação da realidade, que é a praxiologia, não podemos deixar de entoar loas a seu método, por certo, o melhor que a história da filosofia nos ofereceu até o presente momento, segundo afirmação de Walter Kohan, em seu livro Filosofia para criança.
[18] O vocábulo “pessoa” vem do verbo latino “personare” que quer dizer soar,emitir som. Pessoa emite som, e este som deve ser ouvido.
[19]Por causa desta vocação iconoc1asta, quase todos os filósofos foram perseguidos, de uma ou outra maneira.
[20] Paulo Ghiradelli é mestre e doutor em Filosofia e Filosofia da Educação; atualmente dirige o Centro de Estudos em Filosofia Americana.
[21] No cap. 05 será encontrada a alegoria do homem nu.
14 Este é o papel frontal da crítica
[23] Note-se que ação não é sinônimo da poiésis dos gregos (não é ação sobre as coisas, mas ação sobre as pessoas.). Também não se pode confundir com Práxis, pois ação é só um elemento da práxis e não a práxis toda
[25] Minerva é a deusa da sabedoria e a coruja é o logotipo (símbolo) da filosofia.
[26] Entretanto é bom frisar que foi na Idade Média (em contraste com o mundo grego) que se esbulhou o cosmo do divino que foi localizado estritamente na transcendência, dando início à desastrosa dicotomia “mundo sagrado versus mundo profano” – tudo isto é, a nosso ver, o marco do desregramento ecológico cujo paroxismo macabro estamos vivendo hoje).
[27]Hoje, graças sobretudo à filosofia de Michel Foucault, sabemos que não só saber é poder, mas o inverso também é verdadeiro. Existe uma relação dialética entre saber e poder e poder e saber, isto é, se o saber produz poder, o poder, por sua vez, produz saber. Aliás, segundo o filósofo citado, as relações de poder pervade todas as relações sociais. Nada está imune ao poder, nem mesmo a produção da subjetividade. É a microfísica do poder entrelaçando tudo.
[28]Até o século XVI, pensava-se que o negro (bem como o índio) não era dotado de alma. Isto foi até objeto de consulta ao Papa.
[29] Leonardo Boff é teólogo, filósofo que, de tempos para cá, tem dedicado sua privilegiada inteli-gência aos problemas ecológicos, escrevendo várias obras sobre o assunto.
[30] A nosso ver, há um pequeno engano aqui, a visão clássica a que se refere Boff é a visão mecanicista da Idade Moderna, pois, na Idade Clássica e na idade pré-clássica, a visão era orgânica.
[31] Heidegger é, na opinião de alguns, o maior filósofo do século XX, autor de Ser e o Tempo.
[32] Filósofo grego do século XX, radicado na França.
[33] Aristóteles ensinou que democracia é o governo do povo pelo povo, ao que Lincoln acrescentou a expressão “para o povo”
[34] Em Edgar Morin, não sabemos o que mais admirar em sua multidimensionalidade cultural: se o
filósofo, o antropólogo, o sociólogo, o ecólogo, o cientista político ou o pedagogo.
[35]Walter Kohan emite a seguinte crítica sobre o conceito de Democracia de Dewey: “Resulta notório o acentuado caráter idealista e a-histórico dessa concepção de 'democracia'. Dewey não fala de nenhuma democracia existente, mas de um ideal ético político; não caracteriza como são as relações sociais imperantes em nossa sociedade, mas como deveriam ser... Dewey não assume como parte consubstancial das democracias existentes as exclusões e iniqüidades econômicas, políticas, sociais, culturais, étnicas, religiosas, de idade e de gênero que fizeram partes delas, desde a Atenas de Péricles até a democracia estadunidense. Preso a um industrialismo e cientificismo que faz seus, esse ideal não parece oferecer chances de transformar as sociedades burguesas que o impulsionam” (KOHAN, opus cito P. 49).
[36]A Revista Veja, de 31 de janeiro de 2001, em suas páginas amarelas, trouxe uma entrevista com Harold Bloom, crítico literário norte-americano. O título da entrevista é Leio, logo existo, uma paráfrase do célebre apotégma de Descartes: Penso, logo existo.
[37] Interdisciplinaridade é a contribuição de todas a disciplinas particulares numa função integrada. È diferente da multidisciplinaridade em que cada disciplina labora isoladamente em seu respectivo
canto.
[38] Transdisciplinaridade se apóia na totalidade da sabedoria humana em que as partes são secundarizadas ou vistas em lusco-fusco. Importante é a visão onímoda do todo, isto é o todo visto de todos os lados, inclusive do lado cósmico e do sagrado.
[39] Tal reabilitação é atribuída principalmente a Nietzsche que fez do mito o eixo em torno do qual girou toda sua impactante filosofia.
[40] Compreender a realidade é ir a seu encontro com tudo que somos: mente, corpo, coração, afetos, emoções, paixões, estados de espírito, etc. Ver capítulo anterior.
[41] Gusdorf, apud Aranha e Martins, p. 73
[42] Na realidade o mito não explica, pois esta é obra da ciência – o mito compreende (ver cap. 02)
[43] O mito é o desnudamento total da alma
[44] Ética trata do que, por excelência, é inerente ao ser humano: sua vida, ao passo que a moral tratado que é externo ao ser humano: leis, costumes.
[45] Neste item acompanhamos Marilena Chauí em seu livro Convite à filosofia, 13 ª ed. p. 35
[46] A palavra razão vem do verbo “reor” que significa recolher. A razão recolhe essa infinidade de coisas e as unifica a nível abstrato.
[47] Giovanni Reale ( Marilena também) nega que tenha havido a influência da Filosofia Oriental na Filosofia ocidental.
[48]A força do programa de filosofia para crianças, do Prof. Lipman certamente está ligado a este poderio.
[49] Diálogo aqui não é uma conversa macia, pacífica; como lembra Paulo Freire, o diálogo deve ser conflituoso, pois, sem conflito não se chega a um consenso, a uma síntese consistente e profícua.
26 Historicamente sabemos que o método da dúvida já estava insinuado por Santo Agostinho, quando este afirmou: “Se duvido, penso”
[52] Na 13ª ed. M. Chauí trata deste tema na p. 21
[53] A bem da verdade, como aliás já foi colocado, a filosofia é essencialmente transdisciplinar, pois ela além da disciplina, visa o que está acima da disciplina
[54] È bom lembrar que coerência perfeita só se pode encontrar nos deuses
[55] Zeus condenou Sísifo a rolar uma pedra morro acima, quando a pedra estava quase chegando ao topo do monte, ele exausto não a sustentava e ela rolava ao pé do monte, tendo ele começar tudo de novo. Assim procede a filosofia que recebendo tranco de toda parte, não consegue chegar ao cume
da verdade, e por isso, da aceitação.
[56] Estamos nos referindo á utopia que, tendo em vista algumas mediações, tem possibilidade de se realizar, e não de “utopismo” que, não vislumbrando nenhu­ma mediação, não se pode realizar.
[58] Tratamos do mito no cap. 03
[59] Estando a ideologia em tudo, ela está na filosofia, mas não se confunde com filosofia, como veremos
[60] As coisas se definem pela essência que é o modo de ser do existente.
[61]Hoje se começa a falar em uma filosofia pós-moderna que consiste em minimizar o papel da razão.
62 A experimentação se baseia em quantidades, a experiência, não.
64 Segundo a dialética, o movimento se faz à maneira de espiral.
[65]O pragmatismo é, de certa maneira, uma filosofia exisencialista.
[66]Tratamos, mais especificamente, da ética em nosso livro: Dialética - A Terceira Via da Educação: de Heráclito a Paulo Freire.
[67] Segundo Gramsci, na companhia de Aristóteles, todo ser humano nasceu para mandar (para ser político).
68 Segundo o psicanalista Alfred Adler, política é o instinto fundamental do ser humano.
[69] O que faz a diferença entre a indução pré-científica e a científica é a quantificação ou matematização das variáveis ou do conhecimento. Até aí, a matemática era usada somente como meio de educação, dado que o homem, ser espacial que é, tem de se localizar no espaço. Como se vê, a ciência antes da Renascensa se fazia de maneira filosófica.
[70] Rever o Cap anterior sobre este assunto.
[71] Há uma diferença entre instrumento técnico e tecnológico, o primeiro aumenta a força física, o segundo, aumenta a precisão.
[72] Cientificismo é a crença infundada de que a ciência conhece tudo e, assim, é capaz de resolver todos os problemas. É uma espécie de magia, com poderio ilimitado sobre as coisas e os homens; um tipo de Religião, sito um conjunto doutrinário de verdades intemporais, inconcussas, inquestionáveis.
[73] Não estamos advogando que a filosofia perca a característica da subjetividade que é um dos marcos de sua individualidade, mas que se diminua ou se elimine seu subjetivismo que é um vício
[74] Nos tempos primevos da humanidade, SOPHIA era a deusa do pensamento; a seu bel prazer, ela doava o pensamento ao ser humano quando este nascia e o recolhia na sua morte.
[75] Este sentido se enquadra no pensamento de Kant. A propósito do verbo decidir, podemos asseverar
o seguinte: quem não possui uma utopia, quem não tem na cabeça uma saída para a questão, quem não é detentor de um modo fundamentado e coerente de fazer, ou seja, quem não é utópico, mas “utopista”, não tem direito de criticar. Se a crítica só se contenta com seu lado negativo, sem apontar uma saída, não passará de um fogo fátuo ou de um sino que retine e nada mais; ao lado de denunciar, ela não tem direito de criticar, de denunciar, com ensina Paulo Freire.
75 Aqui se insere a posição da Escola de Frankfurt, para a qual, a crítica deve impedir que os seres humanos se abandonem irrefletidamente às idéias e formas de conduta instituídas socialmente e que as ações e fins do ser humano não devem ser produtos da necessidade (KOHAN, 2000 : 26).
Também aqui se identifica o pensamento de Michel Foucault, para quem a crítica ‘é tornar difíceis coisas fáceis, é ‘desnaturalizar ‘ o mundo, a desbanalizar o quotidiano, torná-lo mais complexo, menos óbvio. A crítica nos força ver o mundo como ‘se fosse a primeira vez’ (idem, idem)
[77] Neste terceiro sentido, situa-se o pensamento de Larrosa, para quem , a crítica é a abertura do espaço ético ‘à inquietude, à sensibilidade, à atenção’, situando-se ‘fora das morais afirmativas, não questionando uma moral para sua troca por outra, não denunciando uma falsa moral e o “advenimento” da moral verdadeira’; afinal a crítica é a ‘afirmação do valor da não-conformidade, da insatisfação, da abertura’ (KOHAN, idem, p. 27).
[78]Na filosofia tradicional, afirmava-se que a verdade era adequação entre a mente e a realidade externa; nesse sentido, crítica pode ser oposição entre verdade e erro. No sentido atual de verdade, não (consultar cap. 10).
78 A ideologia não dá o braço a torcer. Se ela se mostrasse defeituosa, ninguém a aceitaria. 79 Não é a toa que um gaiato afirmou que Deus criou o mundo em posição natural e o diabo veio e o colocou de cabeça para baixo.
86 Atenção: esta citação só tem sentido quando lida em toda sua integridade, sobretudo o que está em negrito.
[82] No terreno do fazer, a mentira se transforma em dolo – que é pensar uma coisa e fazer outra, com o fito de enganar.
[84] Na concepção histórico-filosófica, ver o cap. 03
[85] De fato democracia perfeita não existe. Toda democracia é um projeto que está em processo de realização. Seu sucesso dependerá muito da educação do povo.
[86]Referência à Copa de Futebol da França em 2002, em que a Nike patrocinava a CBF e impôs a participação de Ronaldo, o fenômeno, em condições de saúde adversa para o atleta.
[87] Em nosso livro, Dialética - A Terceira Via da Educação: De Heráclito a Paulo Freire,
[88] Ver Concepção dialética da História, 6ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986, p. 16
. [90] Anísio se revela aqui um fiel seguidor de Dewey, com quem estudou Pragmatismo nos EEUU.
[91] Estas afirmações de Anísio Teixeira foram extraídas do artigo do Prof. Pedro Angelo Pagani, respectivamente, p. 20 e 22 da Revista Educação: Associação Brasileira de Educação, Ano 32, n. 101.
70 Segundo Dewey, o pensar e o julgar são diferentes de conhecer. O conhecer é apreender o que é dado, não favorecendo a criatividade, ao passo que o pensar e o julgar, sendo hipotéticos, proje-se sobre o futuro e, assim, favorece a criatividade. Nesta linha de raciocino, sendo a filosofia a arte de pensar, ela é tão prospectiva, quanto o pensar.
[93] A metodologia da pedagogia tradicional girava em torno do objeto, ou seja em torno do conteúdo, em contraposição, sobreveio a metodologia ontogenético que gira em torno do sujeito do conhecicimento. Naquele momento, a pergunta freqüente era: o que é mais importante para ensinar latim a João, saber latim ou conhecer João. Hoje, parece estarmos chegando a uma síntese: saber latim e cnhecer João. Lipman insiste: “... o objetivo da educação tem de ser transferido da aquisição de conhecimento para o pensamento, e este pensamento tem que ser crítico ou lógico ou ambos”.
[94] Inquirir, investigar é indispensável para a hominização do ser humano e isto é a finalidade suprema da escola.