sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

FILOSOFIA IDEALISTA

  1. CAPÍTULO 07

Ciência sem cônscia é a ruína da alma (Rabelais)
FILOSOFIA IDEALISTA
O que é Idealismo? Quando se fala em Idealismo, costuma-se pensar em veleidades, aspirações, desejos ou idéias irrealizáveis[1]. Em filosofia, Idealismo é uma questão muito séria e de altas elucubrações. No capítulo 02, vimos que, no que se refere ao caminho a percorrer, ou quanto ao método, a filosofia se divide em várias escolas, correntes ou tendências. O Idealismo é a primeira destas escolas. Chama-se Idealismo, porque, para ele, a realidade tem como matriz as idéias e o processo filosófico parte é das idéias e a elas se circunscreve. As coisas materiais, ou são expressões das idéias ou dependem das idéias. A nível filosófico, Idealismo é um sistema de idéias. É o primeiro sistema a ser arquitetado na história do pensamento. O que havia anteriormente, por exemplo, em Parmênides, era disperso, desorganizado, por isso, assistemático. Esta temática será mais bem esclarecida na página seguinte.
Origem do Idealismo Já se tem repetido que história é mãe da filosofia. Se isto vale de maneira geral, vale também para as escolas de filosofia. Possivelmente não teríamos o Idealismo se não tivesse havido pelo menos dois motivos que o provocaram. Eis as duas variáveis que o antecederam: a) a dicotomia “uno versus múltiplo”. O povo tinha a seguinte preocupação: diante da diversidade quase infinita da natureza, o povo perguntava intrigado: atrás de tudo isto, não haveria algo unificador? Criando o Idealismo, a filosofia dos dois mundos tão bem ilustrada pela Ale-goria da Caverna, Platão veio dar uma reposta a esta questão. A Alegoria da Caverna será explicada posteriormente. Por hora basta dizer que no mundo sensível (que é projeção do mundo das idéias) existe a diversidade, mas as coisas tão diversas são unificadas no mundo das idéias. Enquanto o mundo sensível é diverso, mutável, passageiro, o mundo das idéias de onde tudo provém, é imutável, perene, eterno, unificador. Criando a teoria dos dois mundos, Platão resolveu o problema. Este mundo terreno, de sombras, é movediço. Tudo muda. Heráclito[2] tem razão. É o mundo da diversidade. O mundo imutável é o das idéias. E como, nesse mundo, estão os arquétipos, os modelos, os manequins de tudo que existe aqui, o problema do uno e do diverso está resolvido. O que existe mesmo é o mundo das idéias. O mundo da diversidade não existe. b) morte de Sócrates. Platão tinha o maior apreço e a maior reverência para com seu mestre. Quando Sócrates foi condenado à morte, ele ficou profundamente revoltado e elucubrava: um mundo que mata um homem tão honesto, tão virtuoso, não pode existir; vamos criar um outro que está tematizado no Idealismo que é o primeiro sistema, corrente, escola, filosofia a ser criada. O termo Idealismo tem como raiz a palavra idéia, no plural idéias que, segundo Platão, são individualidades que nunca mais desaparecerão[3],. as quais seriam os fundamentos, os modelos, os manequins, as matrizes de tudo que existe no mundo sensível. O Idealismo, ao longo de quase dois milênios e meio, de Platão (427 - 347 a.C.) a Hegel (1770-1831 d.C.), apresenta uma variedade enorme de posições. Mas podemos destacar algumas teses que seriam aceitas por todos os seguidores desta escola. Uma é que a realidade, sem excluir, evidentemente, o homem, é de cunho mais espiritual que material. Quanto ao conhecimento[4], também, todos concordariam que ele é predominantemente produto da razão, por isso jorra de dentro do homem, que é sua fonte. Numa linguagem da moda, o conhecimento é construído pelo homem.
Assim, preconizam os filósofos idealistas, que o conhecimento sensível, beira a opinião. No tocante aos valores, todos são unânimes em proclamá-los imutáveis e perenes, já que são projeções das idéias e estas são perenes..
A filosofia idealista nasceu com a dupla, de inolvidável memória, Sócrates e Platão. Como sabemos, Sócrates apesar de ser considerado o mais legítimo mestre do Ocidente, nada escreveu. Platão, seu genial discípulo, foi quem melhor expôs e sistematizou seu pensamento. Esta sistematização foi tão perfeita que Platão é considerado o pai do Idealismo, pelo menos do Idealismo ontológico e objetivo.
Trataremos dos principais tipos de Idealismo. Para tanto, o melhor caminho é apresentar e analisar nomes que são referências necessárias na história do Idealismo. Pensando assim: trataremos destes nomes, na seguinte ordem cronológica: Platão - Santo Agostinho - Descartes - Kant e Hegel.
Deste modo, exporemos, em ordem cronológica; Idealismo platônico ou clássico – Idealismo agostiniano ou medieval – Idealismo descarteano – Idealismo kantiano ou Criticismo e Idealismo hegeliano. Ao final, voltaremos a Hegel, já no último no Apêndice, ao tratarmos da filosofia dialética.
Para a arquitetura do Idealismo, Platão foi impulsionado por dois motivos fortes, como já foi explicitado na p. 94

Ontologia ou metafísica Platônica
1 - Idealismo platônico - ontológico e objetivo
Apesar de alguns historiadores acharem que a filosofia platônica é um realismo, pois - segundo Platão - as idéias seriam realidades externas à mente humana existentes no “topos noetós” - mundo das idéias, esta não é nossa posição. De nossa parte, achamos que toda corrente filosófica que tem como ponto de partida as idéias é Idealismo, e toda corrente filosófica que tem como ponto de partida as coisas palpáveis, concretas é Realismo. Ora, a filosofia platônica parte das idéias, logo, é ela Idealismo.
Já sabemos, pelo cap. 04, que ontologia ou metafísica trata do ser - da realidade subja-cente a todas as coisas, já que as aparências enganam, como o povo diz muito bem: “nem tudo que reluz é ouro”.
Para o pai da Academia, a verdadeira realidade são as idéias. Elas são o substrato de tudo.
Para ilustrar a Teoria das Idéias ou metafísica (ontologia, melhor dizendo) bem como a Teoria da Participação e a Teoria da Reminiscência, Platão criou o Mito da Caverna. Prefiro a expressão: Alegoria da Caverna, que não se presta à confusão, já que alegoria é a maneira simbólica de dizer as coisas. Na Alegoria da Caverna, encontramos três teorias referidas. Teoria das Idéias Teoria da Participação. A Teoria das Idéias será mais bem expressa na exposição da Alegoria da Caverna, logo em seguida. A Teoria da Reminiscência será explicitada melhor quando tratarmos da gnosiologia platônica. Quanto à teoria da participação, vamos esclarecer que todo ser do mundo sensível é participação do verdadeiro ser específico (modelo, forma, arquétipo, essência, idéia) que se acha no mundo das idéias. Podemos, em lugar da palavra participação, usar os termos sombra, projeção, imagem.
Eis o conteúdo da Alegoria da Caverna. Este mundo - diz Platão - pode ser comparado a uma caverna. Nela os homens estão acorrentados, de frente para a parede, não podendo olhar para trás, nem para os lados, devido a uma viseira que lhes estreitam o campo visual.
Esta caverna - se Platão vivesse hoje, certamente falaria de uma sala de cinema - só possui uma abertura para luz, que fica no fundo da caverna. Por esta pequena abertura entra a luz que se projeta no fundo da caverna.
Pois bem, do lado de fora, diante do orifício da caverna estão perfilando as idéias que são as verdadeiras realidades. Ao fazer isto, elas, pela força da luz, se projetam na parede da caverna à maneira de sombra. Neste mundo, os homens só vêem as sombras, não a verdadeira realidade; os únicos que conseguem contemplar o verdadeiro mundo são os filósofos que inconformados com a situação, e num esforço penoso e quase sobrehumano de reflexão, conseguem escalar as paredes íngremes, passar pela pequena abertura e contemplar o mundo deslumbrante das idéias. Voltando ao convívio dos outros homens, e relatando o que viram, para convencê-los a se rebelarem também, são considerados loucos, e são expulsos.

Antropologia Platônica
Quem é o homem? Um ser constituído somente de uma substância espiritual, de uma idéia que vivia a plenitude da felicidade no mundo das idéias. Um dia, porém, este homem cometeu um crime - Platão não explica - e, assim, foi obrigado a se encarnar em um corpo que lhe serve de prisão ou sepultura. Cada ser humano que nasce aqui, no mundo, é uma sombra do verdadeiro homem que está no mundo das idéias. Notar que mundo das idéias se pode traduzir por paraíso das idéias – “topos noetós”.
A terra é o purgatório do homem. Depois de purgar todos seus crimes, o homem voltará ao empírio de idéias, de onde proveio.
Gnosiologia Platônica
No Paraíso das Idéias, o homem possuía todo o conhecimento possível ao ser humano. Encarnando-se, porém, no tempo, seu conhecimento é esquecido; fica sepultado no corpo, ou dormindo nos porões do inconsciente.
Como se faz o conhecimento? Conhecemos recordando - é o método da reminiscência. O educador, usando as imagens movediças deste mundo, desperta no educando o conhecimento adormecido, vai despertando nele os arquétipos - modelos - da verdade, do bem, do justo que estão no Paraíso. Por outra, o homem encarnado não se lembra das idéias, mas vendo as coisas sensíveis e auxiliados pelos mestres, ele vai se recordando ou tem reminiscências das idéias que se encontram na região supraceleste.
Como sabemos pelo capítulo 04, em filosofia, tudo depende da concepção ontológica - metafísica - que se tem da realidade. Segundo Platão, o “ser” verdadeiro não está nas coisas deste mundo, mas fora delas - nas “idéias”. Estas são individualidades, verdadeiras entidades ontológicas - metafísicas - que encerram o autêntico ser das coisas, possuem as propriedades do “ser”, que as coisas mutáveis não possuem; são unas, imutáveis, eternas e não estão sujeitas, nem ao movimento, nem à corrupção.
Dito isto, pode-se, agora, caracterizar as duas espécies de conhecimento em Platão:
1 - Conhecimento sensível, diverso, mutável, passageiro, duvidoso, relativo, não confiável. Afinal, segue as características da realidade sensível. Apesar disto, tal conhecimento é necessário por funcionar como uma espécie de despertador da verdadeira realidade do mundo das idéias.
2 - Em contraposição ao sensível, o conhecimento intelectivo é uno, imutável, eterno, certo, absoluto e fidedigno; pois tudo isto caracteriza a realidade das idéias.

Axiologia platônica
Axiologia trata dos valores, direitos, deveres, responsabilidades, etc.
Aqui também vale o aforismo: tal a ontologia, tal a axiologia. Se na ontologia - metafísica - tudo é perene, aqui também. A estática da realidade causa a estática na Ética - Estética - Política - Jurisprudência e Pedagogia - o que era bom no passado será sempre bom; o mesmo se diga dos conceitos do Belo, do Justo, que jamais mudam.
Sobre ética e política, qual a posição de Platão? Para ele não há distinção entre ética e política; a República, seu livro mais importante e dos mais importantes que já se escreveu, é uma obra tanto política quanto ética. A ética trata das virtudes individuais e a política (Estado) trata das virtudes públicas.
Reale coloca na boca de Platão a seguintes sentenças: “A política é o horizonte absoluto da vida humana, “O homem só pode explicar-se moralmente se se explica politicamente”. Para ele, o homem se realiza na “polis”; quem não é cidadão não é homem e quem não participa do Estado não é cidadão. A política é um dos constitutivos do ser humano. O Estado, por sua vez, deve ser não só o guardião do povo, mas seu educador mor. A educação espiritual é sua função máxima.
Uma crítica à Ética socrático-platônica: a ética é fruto do conhecimento; quem conhece é virtuoso, quem não conhece não é. Posição historicamente insustentável. Aristóteles vai corrigir esta posição, colocando que a virtude é muito mais uma questão de hábito do que de conhecimento.

Idealismo Agostiniano
Mil anos após Platão, depois de a filosofia ter passado por uma enorme crise, acompanhando a decadência da Grécia, surge, no início da Idade Média uma figura de alta grandeza, Santo Agostinho (354 - 430 d.C.).
Dada a grande sintonia do Idealismo Platônico com a revelação cristã, o bispo de Hipona, ao resgatar o prestígio da filosofia, o faz na linha de Platão e não na
linha de Aristóteles.
Santo Agostinho seguiu Platão, mas teve de modificá-lo em alguns aspectos, dada a revelação cristã.[5] Entretanto, a metodologia é a mesma: tudo parte das idéias. A história é a expressão externa das idéias que estão em Deus. Só que estas idéias não estão no paraíso - platônico - mas estão em Deus. O homem é composto de alma, que é a imagem de Deus, e corpo que também foi criado por Deus. Enquanto no platonismo o corpo é mau, em Santo Agostinho o corpo é bom, porque criado por Deus. Deus, a perfeição suprema, não pode criar algo mau.
Se as idéias estão em Deus e Deus é a causa de tudo, Deus é também a causa do conhecimento. Este se faz por idéias infundidas por Deus na mente dos homens. A “reminiscência em Platão é substituída pela iluminação”, provocada por Deus.
Sobre Ética, a posição de Santo Agostinho segue também os ensinamentos bíblicos, principalmente os Dez Mandamentos e o Sermão da Montanha (bemaventuranças).

Idealismo Descarteano
Depois de um intervalo de mais de mil anos, dominado pelo realismo aristotélico, chegamos a Renê Descartes (1596 - 1650). Descartes é, com todo mérito, o criador do Idealismo moderno, também chamado Racionalismo, já que, nesta escola, a razão é considerada a fonte única do conhecimento.
Qual então é a antropologia Descarteana?
Desfazendo a unicidade do ser humano, inaugurada por Aristóteles e vigente na 2ª parte da Idade Média, Descartes vai ensinar que o homem é constituído só de um princípio: a alma. O corpo não passa de uma máquina de que a alma (piloto a máquina) se serve para realizar seus desejos. Inspirando-se no célebre aforisma de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”, Descartes vai lançar também o seu: “Penso, logo existo”. O homem é a medida de todas as coisas pela força de seu pensamento. O pensamento é tão poderoso que ele é capaz de criar a realidade. Tudo que é, só o é na medida em que é pensado pelo homem - inclusive o próprio Deus. A seqüência é a seguinte: se eu duvido, eu penso; se penso em Deus, Deus existe; se Deus existe, o mundo existe. O pensamento (a razão) pode tudo. Mais tarde a razão será endeusada. Na Revolução Francesa, será retirada a imagem de Nossa Senhora do altar-mor da Catedral de Notre Dame em Paris, que será substituída por uma imagem de mulher representando a deusa razão.
Se a razão é todo-poderosa, se a realidade sensível é derivada da razão, isto leva à conclusão de que o único conhecimento que interessa é o da razão. Também, o único método de conhecer é o método dedutivo, aquele que parte das verdades gerais intuídas pela razão (ver capítulo 04) e chega às verdades particulares das coisas. Assim, fica escanteado o método indutivo e descartada fica a observação empírica.
Descartes ensina que o homem nasce com idéias “inatas”[6] - daí o Inatismo (Nativismo) -. Basta raciocinar dedutivamente com estas idéias, que se chega ao conhecimento das coisas sensíveis. Outra idéia, e esta devastadora , de inspiração descarteana é a do mecanicismo, implementado depois por Newton. Ele disse que o corpo não faz parte do ser do homem, mas é só uma máquina. O que, porém, vai sedimentar-se no imaginário do povo, é que o homem todo é uma máquina. Já se pode perceber o arraso que esta posição vai acarretar no processo de hominização do ser humano.

Idealismo Kantiano
Kant (1724-1804), é um filósofo alemão de alto vôo. É o maior representante da fase iluminista do Idealismo, do qual ele tentou fugir, mas em vão. Entre os grandes méritos de Kant, está a teoria da Crítica - Criticismo - Apesar da criticidade ser uma característica histórica da filosofia, coube a Kant[7] formular a teoria sobre ela (rever capítulo 05). Outro mérito foi ter criado a Filosofia da Ciência. A palavra “epistemologia”, como filosofia da Ciência, só vai existir a partir Kant. Para criar a palavra “crítica”, ele se inspirou no verbo grego “creinin” que significa separar.
Também se credita a Kant a conciliação entre filosofia e ciência, que tem analogia e relação de efeito com a conciliação entre as posições absolutistas de Newton e as posições ceticistas de Davi Hume[8]
E porque Kant é idealista? Não é tanto no plano da Ontologia que ele muito depreciou. Efetivamente ele afirmou que o homem não pode conhecer a realidade em si (metafísica), mas só os fenômenos É, portanto, idealista no plano da Gnosiologia. Ele quando conclui que o conhecimento das coisas sensíveis só acontece quando a razão cobre estas coisas com suas categorias criadas aprioristicamente. Isto nada mais é do que manter a soberania da razão.
Puro racionalismo! Puro Idealismo. Esta doutrina vai ter influência na educação. Se é a razão que cobre a realidade com suas categorias de entendimento, retrocedemos à posição de Descartes. Basta acionar a razão para termos o conhecimento. Mais uma vez fica de fora a experiência sensível, a indução. Assim, todo o conhecimento é “exprimido melhor de dentro para fora do que despejado de fora para dentro no estudante”. Este mantra é de viés kantiano.
Aspecto importante da filosofia kantiana para a educação[9] é sua concepção ética, que é também, toda ela, comandada pela razão. A lei não vem do mundo, nem de Deus. Nasce no recôndito da razão. É uma lei autônoma e não heterônoma. Os princípios desta moral são os imperativos - concretamente - imperativos categóricos. A fórmula dos imperativos categóricos reflete o caráter formal da moral: “Aja de tal modo que possa querer que essa ação se converta em lei universal”. Em outras palavras: não ajas movido pela utilidade, mas para dignificar a humanidade que está em ti. E em tudo, penses na humanidade, de que és representante legítimo”. Isto é o formalismo moral criado pelo mestre de Koenisberg. Cumprir o dever pelo dever, mesmo que não haja nenhum reforço externo. Este formalismo ético vai provocar o otimismo e o voluntarismo na Educação. A educação pode tudo.

Idealismo Hegeliano
No Apênice, trataremos mais amplamente da filosofia de Hegel, em que especificamente, trataremos da filosofia dialética. Aqui só exporemos alguns pontos de sua substanciosa filosofia.
Hegel (1770-1831) é o último grande filósofo idealista. Ao lado de Marx, foi o genial criador da dialética moderna.
A dialética, resumidamente, é a visão de que o movimento[10] é a substância da realidade. Evocando Heráclito, vai afirmar que tudo é um devir, nada é, tudo está sendo. O movimento da dialética se faz em três etapas: tese, antítese e síntese. A tese do primeiro processo dialético é a Idéia ou Razão. Desta tese tudo proveio através da Dialética, incluindo a instância mineral, a vegetal, a animal, a instância do ser humano e, finalmente, a instância do Estado que seria a síntese mais perfeita da Idéia ou Razão[11].
A esta posição antropológica (lamentável), segue paralela a relevância que ele dá para a filosofia: “A mais alta manifestação do Espírito absoluto é a filosofia , saber de todos os saberes, quando o Espírito atinge a absoluta autoconsciência”.
Outras explicitações sobre o Idealismo
Sendo a realidade mais espiritual do que material, e o mesmo acontecendo com o ser humano, o Idealismo, na educação, dá mais importância ao lado espiritual do ser humano. O Idealismo manifesta um tropismo - impulso - para o interior do homem, sede do espírito, ou para o além, onde se situa o verdadeiro mundo. O ser humano, prescindindo do tempo e do espaço, é o mesmo em toda parte, devendo receber uma educação igualitária. O ser humano é contemplativo, por natureza. Nasceu para conhecer, mesmo que tal conhecimento seja só ornamental, nada tendo a ver com a transformação deste mundo. A felicidade está no conhecimento das idéias, de Deus ou das cabeças iluminadas de homens superiores.
O Idealismo é uma filosofia de alta coerência, e de muito apreço à ontologia que ele julga o maestro da orquestra filosófica, por isso, tal a posição ontológica, tal a posição nas outras partes da filosofia. Na ontologia, ele ensina que a verdadeira realidade está no interior do homem. Daí se dar mais importância às ciências sociais ou humanas, visto elas falarem mais diretamente do homem do que as ciências físicobiológicas ou empíricoformais. O “conhece-te a ti mesmo”, que era a divisa da pedagogia socrática, continua, de certa forma, a meta de todos os idealistas. Não se despreza o conhecimento do mundo material, já que ele tem um substrato espiritual e, por isso, ajuda a despertar o conhecimento racional. De certa maneira, entretanto, o conhecimento continua um produto quase isolado da razão. O método indutivo está descartado.

Crítica à filosofia Idealista
A crítica positiva ao Idealismo já foi delineada no item anterior. Vê-se que o Idealismo traz a vantagem de superar as posturas materialistas, empiristas, positivistas, pragmatistas e comportamentalistas/funcionalistas. Entretanto, este sistema padece de uma compreensão precária do mundo material que, em última análise, não passa de projeção do espírito, não oferecendo condições para o uso do método indutivo, que é o método, por excelência, da pesquisa científica. Como conseqüência do princípio de imanência da realidade ao espírito, existe uma concepção unilateral do mundo. Isto limita o estudo da realidade e não se presta à transformação do mundo e à solução de problemas concretos do homem.
Para maior aprofundamento, ver Bochenski, em Filosofia Contemporânea Ocidental, apud Mary Rangel em Currículo de 1º e 2° Graus no Brasil. Vozes 1988, p. 23.
Embora válidas e procedentes estas considerações negativas, a crítica mais séria está por ser feita. Na introdução deste ensaio, referiu-se à ineficácia do Idealismo para a satisfação da natureza humana. Não ajuda no processo de hominização do ser humano. Sua concepção do ser humano é uma abstração. Trata-se de um vício de origem: é um essencialismo absoluto. A antropologia idealista é inteiramente viciada. Está na contra-mão da história concreta do homem. O que ela propõe não tem correspondência neste mundo. O homem - ensina o Idealismo (platônico) - é uma essência que vivia no Empírio de Idéias e que, um dia, por castigo, foi obrigada a assumir um corpo. Este homem não existe. O que vemos no mundo é um ser de carne e osso. Um espírito materializado por um corpo real e comparte do homem indivíduo ou um corpo informado por um espírito que lhe é comparte também na constituição do ser humano.
O Idealismo, como filosofia essencialista[12] que é, estruturalmente, não oferece condições para satisfazer as exigências da natureza concreta e histórica do ser humano. Como uma rede de fios invisíveis (que é a filosofia) pode atingir e colher, em seu regaço, um ser que não é só espírito, mas é, também, matéria sensível e quantificável? Afinal, o ser humano não é um ente que desceu do céu, mas alguém que anda com o pé no pó e o coração nos espinhos, num arquipélago de rara felicidade e num mar de preocupações e não poucos sofrimentos.
Literalmente, eis o que afirma Suchodoski, filósofo polonês: “Esta formação social é fundamental (...) porque, na sociedade do futuro, cada profissão será revestida de caráter social, e cada cidadão tornar-se-á membro responsável da democracia. O problema da formação social deve ser posto no primeiro plano das nossas preocupações... deve ser considerado em toda sua vastidão e ir do conhecimento dos grandes processos sociais do mundo moderno à capacidade de compreender o meio concreto em que se age e vive. (...) No domínio da educação, a tarefa mais importante consiste em transformar as grandes idéias universais e sociais para a vida quotidiana e concreta do homem” (SUCHODOLSKI, p. 133).
E continua o filósofo citado: o Idealismo não está preocupado com a dimensão do existir humano aqui e agora, atendo-se tão somente ao passado e ao futuro. Descartando-se o presente, acaba-se anulando também o futuro, já que o futuro é o que fizermos do presente; sem o presente, o futuro é impensável A sociedade é uma categoria do presente; sem ela, a formação social do futuro não tem nenhum sentido. O Idealismo é uma filosofia que menospreza a prática, a transformação do mundo. Insistindo na importância do passado e do futuro , esta filosofia se esquece que o passado não pode mais ser mudado e que o futuro não poderá acontecer, sem a plataforma do presente. O Idealismo trata de abstrações, e o ser humano é um ser do presente e do concreto. Razão teve Marx, ao considerar a filosofia da essência como: “flores que servem para mascarar os grilhões do homem. A crítica desfolhou as flores imaginárias que cobriam os grilhões, não a fez para que o homem arraste a grilheta prosaica e desoladora, mas para que dela se liberte e colha a flor viva” (Idem, p. 125-126).

[1] Isto é um idealismo com “i” minúsculo.
[2] Heráclito foi o primeiro pensador a afirmar que a realidade é mutável, que o movimento é sua essência e o primeiro a insinuar que a contradição é o motor (ou o criador) do movimento.
[3] Segundo Platão, o mundo das idéias é abeterno (criado, não se extingue jamais, ao contrário do mundo dos sentidos que é perecível.)
[4] Conforme a filosofia socrático-platônica, o conhecimento se faz por reminiscência ou rememorização. É que o ser humano nasce sabendo, mas, dado que o nascimento é como uma sepultura que encobre também as
idéias, é necessário acordá-las.
[5]Segundo Platão, Deus não criou o mundo: este é obra dos demiurgos (deuses intermediários).
[6] Descartes rejeita as idéias adventícias que serão defendidas depois por J. Locke. Interessante notar que inatismo e nativismo tem o mesmo significado, apesar de etimologicamente estarem oposição
[7] Por muitas décadas, a Ética kantiana foi considerada o máximo: uma ética muito diferente da que vigorou na Idade Média (que tinha como matriz a religião, e muito diferente da ética hegeliano-marxista, que tem como matriz os embates travados na História (a História é a mãe da Ética). A Ética kantiana, fruto do imperativo categórico é, na verdade, bem superior às éticas anteriores, mas sendo a histórica, não foi feita para os homens, mas para anjos. Carrega o vezo do voluntarismo, próprio da filosofia idealista agostiniana, e do racionalismo, hábito nefasto de querer resolver tudo pela razão.
[8] Depois de Kant surge a senha da conciliação: filosofia e ciência devem ser como os dois trilhos de uma linha de trem de ferro; os trilhos se afastando ou grimpando, a máquina descarrilha. Afinal, são dois seguimentos do saber que, tendo seu estato próprio e sua individualiade própria, devem colaborar um com o outro. Quanto a Newton e Davi Hume, Kant pondera: Davi Hume tem razão, pois o conhe-cimento sensível não é confiável; por sua vez, Newton também tem razão, pois o conhecimento do movimento macro é imutável. O universo – diz Newton - é como um relógio que não adianta nem atrasa. Também, para Newton, o conhecimento metafísico era possível e, se possível, deve ser imu-tável. Por tudo isto, Kant promove a conciliação entre Racionalismo e Empirismo. O Racionalismo reduz a realidade ao pensamento ou à razão, a razão pode tudo, o Empirismo reduz tudo à experiência sensível – fora desta experiência, nada. Por outras palavras, segundo o Racionalismo, tudo que conhecemos vem de nós e, do nosso espírito. Em contra posição, segundo o Empirismo, tudo que conhecemos vem da experiência sensível.
[9] Em pedagogia, Kant começa a introduzir idéias dialéticas que depois serão aproveitadas por Hegel. Vai sugerir ele que a educação se faz por opostos: o conhecimento intelectivo só acontece em opo-
sição ao conhecimento sensível, o filho só se educa contra o pai, o aluno só aprende contra o professor, o indivíduo só se torna cidadão contra o Estado
[10] No fundo, a dialética é uma metafísica, pois é uma visão da realidade, só que a realidade não é estática, mas em contínuo movimento como ensinara Heráclito.
[11] Esta visão do Estado é um desastre, pois fere profundamente sua antroplogia. Senão vejamos. A dialética, como o já colocado, é um processo de tese, síntese e antítese. A tese primeira é a Idéia - o Deus dos cristãos. Desta idéia tudo proveio pelo processo dialético, inclusive o homem. Mas diferentemente de tudo que se pensava anteriormente, seguindo o paralelismo bíblico, Hegel estabelece um corte neste paralelismo. Enquanto a Bíblia diz que o homem é a imagem de Deus, portanto a síntese mais perfeita que pode existir, o criador da Dialética vem, pelo contrário, afirmar que a síntese mais perfeita não é o homem, mas, sim, o Estado. Precisamente: O homem é uma faísca que se desprendeu da idéia e que, no mundo, se absorve no Estado, como a gota d’água no Oceano. Está aprontada a bulha. Começa o reinado sombrio da massificação. O homem não é mais que uma peça na engrenagem do Estado. Está compulsoriamente a serviço do Estado, queira ou não. Este pode explorá-lo até as raias do absurdo. Depois o deixa morrer à mingua nas filas dos institutos da previdência, encharcado de doenças. Adeus identidade, individualidade, personalidade do homem. O que vemos é só massa. Vê-se que esta posição de Hegel, sobretudo para a educação , é devastadora, pois a finalidade principal da educação seria preparar o cidadão para servir ao Estado. Qual a finalidade da educação? Preparar o homem para servir ao Estado. Certamente não deixou de ser inspiração de Hegel, ao reverso, o que Geraldo Vandré escreveu em sua canção na década de 60: “Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam antigas lições. De morrer pela Pátria e viver sem razões.
[12] Filosofia essencialista é aquela, melhor aquelas que, no fundo, só tratam de essências. Elas estão desvinculadas da realidade concreta, como veremos.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

CAPÍTGULO 05

CAPÍTULO 05

A Filosofia é a consciência da ciência (Montaigne)

FILOSOFIA E CIÊNCIA - FILOSOFIA, CRÍTICA E IDEOLOGIA

Dada a importância da ciência, vamos tratar, neste espaço do livro, do relacionamento entre filosofia e ciência em suas características convergentes e divergentes.
No tempo dos gregos, bem como na Idade Média, “ciência” e filosofia viviam harmonicamente. A filosofia era como o tronco da árvore cujos ramos eram as ciências. Esta intimidade era tão grande que muitos analistas chegam a negar a existência da ciência naqueles tempos. Realmente, não havia na ciência grega um processo de descoberta. Os princípios eram intuídos. Faltava o controle quantitativo e matemático das variáveis. O que havia era um processo de demonstração pela lógica silogística.
Entretanto, no Renascimento - século XVI/XVII - iniciou-se a separação entre filosofia e ciência, com a revolução científica, desencadeada por Copérnico, Francis Bacon, Galileu e Descartes. Esta revolução científica consistiu em três acontecimentos de suma importância:
1 - A criação da indução científica;[1]
Até aí o conhecimento se fazia por intuição e dedução;[2]
2 - A introdução do uso dos instrumentos tecnológicos[3]
3 - A criação da dúvida metódica.
Até então o argumento usado para garantir a verdade do conhecimento era a autoridade. Não se podia contradizer a autoridade. Um dos maiores méritos de Descartes é, enfrentando o autoritarismo e o dogmatismo aristotélico-tomista, ter-nos ensinado a duvidar.
Estes três fatores são tão importantes que a maioria dos pensadores afirma que a ciência propriamente dita foi criada aí - no Renascimento - pois sem a indução e quantificação dos dados induzidos, não há ciência: e isto só acontece quando se aplica a matemática ao conhecimento - o que não acontecia antes da Renascença. O mesmo se pode dizer do uso dos instrumentos de alta precisão. Por outro lado, “a dúvida metódica”, impulsionando a pesquisa experimental, impedindo que o conhecimento se estratificasse, foi de grande valia para o novo conceito de ciência.
A separação entre filosofia e ciência se tornou quase uma guerra, nos séculos XVIII e XIX; neste último, chegou-se ao ponto extremo, quando Augusto Conte decretou a morte da filosofia, substituindo-a pelo estado da positividade, da cientificidade. O que resultou naquilo que, hoje, chamamos de cientificismo[4]
O que vemos, então, é a” digladiação” entre cientistas e filósofos, com grande prejuízo para o conhecimento humano.
É pena, pois são dois conhecimentos determinados, com estatuto específico; ainda que independentes em seus níveis, são eles igualmente necessários para a humanidade. Poderíamos comparar esses conhecimentos aos dois trilhos por onde corre uma locomotiva: se estes trilhos se conservam lado a lado, sem se afastarem, mas também sem se afunilarem, só temos a ganhar com isto.
Já se disse que a filosofia é a consciência da ciência. Aqui, a bem da verdade, devemos reconhecer que a filosofia precisa da ciência. Esta se torna, cada vez mais, a rica fornecedora de matéria prima, para a reflexão filosófica. A ciência, com seu rigorismo metodológico, tem ajudado a filosofia a deixar de ser uma tribuna livre em que cada um diz o que quer, a ser menos subjetivista[5], a se afastar do “achismo” tão nefasto a qualquer conhecimento.
Ambos os conhecimentos são necessários. A filosofia compreende, a ciência explica. Explicar, como já vimos nos capítulos anteriores, é determinar as condições de um fenômeno, é prender a realidade nas malhas de conceitos lógicos, não se preocupando com a realidade total do ser humano. Ao contrário, o termo compreensão significa muito mais. Possui uma conotação afetiva e sinaliza o ato de se colocar no lugar do outro, de compartilhar com ele, em seu fazer.
A compreensão só pode acontecer na filosofia, Philos = amigo; sophia = sapientia = sentir sabor. É sentir o sabor das coisas, de sua totalidade, de sua visão onímoda (holística).
A partir do século XVII, começaram a aparecer as ciências ditas “particulares”, em contraposição à “ ciência geral” que é a filosofia. As ciências emergentes se dizem particulares, porque seu campo específico é limitado. Por exemplo: a Física só trata da energia que provoca o movimento; a Química só trata da composição dos corpos; a Biologia só cuida da vida das células nas suas ramificações imediatas; a História só cuida das ações do homem no tempo; a Geografia, das ações do homem no espaço; a Sociologia, das relações entre as pessoas e grupos; a Psicologia, das estruturas mentais e do comportamento observável. Enquanto isto, a Filosofia continua tratando destas mesmas realidades, mas sob o aspecto da totalidade, radicalidade e criticidade.
A ciência, diante da realidade experimentada, formula juízos de realidade, ao passo que a filosofia, diante da realidade vivida, formula juízos de valor. Por isso, Jaspers teve condição de afirmar: Uma ciência não pode ensinar a alguém o que deve fazer, mas apenas o que pode fazer, para atingir seu fim por meios estáveis.(MILHOLLAN & FORISHA, 1972: 65-66)

A ciência é objetiva, a filosofia é subjetiva
Objeto é o que existe fora da mente. A ciência se afasta do objeto para melhor formular as leis que o regem. A filosofia é subjetiva; aproxima-se do objeto para impregná-lo de seu afeto, abraçá-lo ternamente, sentindo seu sabor” sapientia “. Platão disse que a filosofia começa com a admiração. A ciência, por ser objetiva, presume-se neutra, enquanto a filosofia procura administrar as ideologias, sabendo-se vulnerável.
A ciência é teórico-prática e a filosofia é teórico-teórica, ainda que, na concepção atual, conforme visto no capítulo 04, tenha uma propensão para a prática, pelo menos a longo prazo.
A ciência é teórica, pois se faz com conceitos, já que, sem estes, não é possível nenhuma generalização. E as leis científicas são generalizações de coisas particulares. Entretanto, a ciência é, eminentemente, prática, pois tem como finalidade imediata, subsidiando a técnologia, procurar conforto para o ser humano. A filosofia, por sua vez, ainda que preocupada, a longo prazo, com a vida plena do homem, é um conhecimento teórico, pois sua matéria prima são as idéias.
Identificados estes sinais diferenciadores entre filosofia e ciência, é hora de encerrar este item com uma última reflexão. A ciência navega de braçada no mar imenso da curiosidade humana; seu progresso é geométrico. A filosofia, por sua vez, desenxabida, recusada, contestada, perseguida, execrada, pulverizada, qual fênix ressurge das cinzas. Seu método mântrico é o mesmo do mito de Sísifo.

Filosofia e Crítica
Já abordamos os temas da criticidade, no cap 02, item 03 e no cap. 04, ao tratarmos das características da filosofia.(Ver Chauí, p. 18 e 23) Dada sua importância, sua involvência substancial com a filosofia e suas conseqüências para a vida, achamos por bem tratar do assunto em capítulo especial. E como a mais importante função da crítica é descobrir o conteúdo silenciado - a ideologia - resolvemos unir neste capítulo os dois temas.
A Crítica
A palavra crítica é nova. Foi criada por Kant que se inspirou no verbo grego” crinein” que significa separar. A palavra é nova, mas a realidade coberta por ela, é tão antiga quanto a própria humanidade. A idéia primordial da palavra crítica, é a idéia de separação. O ato de julgar é o ato supremo de distinção do ser humano. E julgar é, portanto, separar; por isso, segundo Kant, o processo crítico começa com a separação.
A crítica contempla as duas faces marcantes da filosofia: uma negativa e outra positiva. A primeira é um não às crenças do dia-adia, aos “pré-conceitos”, aos “pré-juízos”, ao fundamentalismo, ao sectarismo, ao o mecanicismo antropológico, ao objetivismo/cientificismo, à facticidade, à brutalidade dos fatos, ao determinism, ao fideismo, à moral de resultado, ao “falou, tá falado”, ao estabelecido pelo poder dominante ou pela sociedade. A segunda é uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, os comportamentos, os valores, nós mesmos; uma interrogação sobre o porquê, o como disso tudo e de nós mesmos – para descobrir, esclarecer e propor mudanças A transcrição abaixo “O rei está nu” muito nos ajudará a ter uma idéia clara sobre a caracterização da crítica como processo de descoberta.
Em geral, julgamos que a palavra “crítica” significa ser do contra, dizer que tudo vai mal, que tudo está errado, que tudo é feio ou desagradável. Crítica é mau humor, coisa de gente chata que acha que sabe mais do que os outros. Mas não é isto que essa palavra quer dizer.
A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais: 1) capaci- dade para julgar, discernir e decidir corretamente;[6] 2) exame racional de todas as coisas sem pré-conceito e sem pré-julgamento[7]; 3) atividade de examinar e avaliar detalhadamente uma idéia, um valor, um costume, um comportamento, uma obra artística ou científica...”[8] (Chauí, 2006 : 18).
Para todos os efeitos, no entanto, o papel da crítica não é contrapor verdade[9] e erro, bem e mal, e muito menos diminuir, deprimir ou amofinar quem quer que seja. Trata-se de descobrir o conteúdo silenciado. O que não significa ainda emitir juízos de valor. Este conteúdo silenciado pode ser de um discurso; de um projeto; de uma promessa; de uma lei; de uma obra de arte: estátua, pintura, música ou qualquer coisa promovida pela ação humana.
Criticar é seguir os critérios que estão inscritos na própria visão de mundo. Ter critério é possuir uma norma para distinguir o que é adequado do não adequado, do que é aceitável do que não é, do qu se deve fazer ou não fazer.
A crítica segue, mais ou menos, o seguinte roteiro. Diante de um todo sincrético (confuso) cabe-nos codificá-lo e decodificá-lo (organizar para analisar). O segundo passo é o da análise: dividir em partes. Terceiro passo: vamos dar-lhe uma visão de conjunto; vamos sintetizá-lo. Notar que a síntese não é simplesmente ajuntar as partes. “A soma das partes não faz o todo”. A síntese é sempre um conhecimento compreensivo que somente a filosofia pode oferecer, dada sua visão de totalidade tanto da parte do objeto como, sobretudo, da parte do sujeito, que se investe todo nesta ação. A síntese é uma totalização objetiva e subjetiva.
Ao perfazer essa travessia, separando e refazendo, a crítica, porém, vai encontrar uma missão muito árdua: ler nas entrelinhas, fazer um trabalho de escavação para encontrar o conteúdo silenciado; silenciado de propósito, ou inadivertidamente. Ao realizar este trabalho, a crítica pode encontrar “uma obra de pensamento”, na expressão de Marilena Chauí, isto é: algo bom que vai enriquecer a personalidade cultural do crítico. É o tesouro do saber. Mas, geralmente, o que a crítica vai encontrar é um conteúdo silenciado, de propósito, para enganar, visto não apresentar a gênese do processo. A crítica, então, encontrou uma ideologia no sentido marxista, como veremos nos próximos passos..
Por outra, criticar é conhecer a realidade, melhor dizendo, é mostrar a nudez da realidade.
A propósito, vamos contar a seguinte Estória, extraída de Claudino Pillet, p. 13-16:
O rei está nu”
Há muitos anos, vivia um rei que gostava muitíssimo de roupas novas e bonitas. Tinha um traje para cada hora do dia. A grande cidade onde ele residia era alegre e movimentada; todos os dias ali aportavam muitos viajantes. Um belo dia, chegaram dois trapaceiros que, fazendo-se passar por tecelões, anunciaram que sabiam tecer panos maravilhosos. Não só as cores e os padrões de seus tecidos eram algo fora do comum como também as roupas, com eles feitas, tinham um extraordinário predicado: o de se tomarem invisíveis para as pessoas que fossem simplesmente néscias.
Que roupas formidáveis! - disse de si para si o rei. - Fazendo-as vestir, eu poderia saber que homens, no meu reino, não servem para o cargo que ocupam. Poderei, também, distinguir os sábios dos néscios. Quero que esses panos sejam imediatamente tecidos! “E deu desde logo muito dinheiro aos dois trapaceiros, para que começassem, sem perda de tempo, a trabalhar.
Os dois montaram dois teares, fingiram trabalhar, mas não tinham fio nenhum no aparelho. Pediram as sedas mais finas e o ouro mais puro, que meteram no próprio saco e, pela noite adentro, trabalharam nos teares vazios.
‘Bem gostaria eu de saber até que ponto adiantaram o tecido’, pensou o rei. Teve, porém, uma sensação esquisita ao pensar que os néscios e os que não estavam à altura dos seus cargos não podiam ver o pano. Imaginava, naturalmente, que por si próprio, nada deveria temer, mas, por via das dúvidas, preferiu mandar primeiro outra pessoa, para ver como iam as coisas. Todos os habitantes da cidade já sabiam da maravilhosa virtude que aquele tecido possuía e ansiavam por ver quanto o vizinho era tolo ou incompetente.
Vou mandar meu velho e honrado ministro ver os tecelões - pensou o rei. - É quem melhor poderá ver como está o tecido, pois é homem inteligente e ninguém serve melhor que ele para o seu cargo. O velho e honesto ministro entrou na sala onde os dois trapaceiros trabalhavam nos teares vazios.
Meu Deus do céu! - murmurou o velho ministro, arregalando os olhos. - Eu nada vejo! - Mas não o disse a ninguém.
Os trapaceiros pediram mais dinheiro, mais seda e mais ouro, a fim de prosseguirem com o trabalho. Meteram tudo nos bolsos, e para os teares vazios não foi um só fio. Nele os espertalhões continuaram a fingir que teciam. O rei não tardou a enviar outro alto e honrado funcionário, a ver como ia o serviço, se faltava muito para a conclusão do tecido. Aconteceu-lhe o mesmo que ao ministro: o homem olhou e tomou a olhar, mas como só havia teares vazios, ele nada mais pôde ver.
Mas, pôs-se a elogiar o tecido que não via, manifestando sua satisfação ante tão belas cores e tão gracioso padrão.
O rei quis, então, ver com os próprios olhos a fazenda, enquanto ela ainda estava no tear. Com um grande grupo de homens escolhidos, do qual faziam parte os dois velhos e honrados funcionários que antes lá haviam estado, foi ele à sala onde os dois trapaceiros teciam, incansavelmente, sem um só fio de linha.
Então, não é magnífico! – exclamaram, ao mesmo tempo, os dois altos funcionários. - Queira Vossa Majestade ver que padrões. Que lindas cores!
E apontavam o tear vazio, pois acreditavam que os outros deviam estar vendo o tecido. ‘Não é possível!’, pensou o rei. ‘Eu nada vejo! Isso é horrível! Serei tão estúpido, ou simplesmente não servirei para ser rei? Seria a pior coisa que me poderia acontecer!’ É, de fato, muito belo - disse ele. - Tem minha inteira aprovação! E sacudiu satisfeito a cabeça, contemplando o tear vazio.
Não queria dizer que nada via. Os numerosos componentes da comitiva, sem exceção, olhavam, mas, por mais que o fizessem, nada logravam ver. Secundaram, porém, o rei em seus elogios.
Como é bonito! - diziam, aconselhando o rei a mandar fazer um traje daquela magnífica fazenda e a usá-la, pela primeira vez, na grande procissão que iria realizar-se dali a dias. Magnífico! Esplêndido! Formidável! - eram as exclamações que se ouviam, de boca em boca.
O rei condecorou os dois trapaceiros e deu-lhes o título de Cavaleiros do Tear.
Os trapaceiros passaram, em claro, a noite que precedeu a manhã da procissão, com dezenas de luzes acesas. Todos podiam ver que trabalhavam febrilmente, empenhados em terminar as roupas do rei. Fizeram de conta que retiravam o pano do tear e o cortavam no espaço com grandes tesouras, costurando-o com agulhas sem linha.
As roupas estão prontas! - anunciaram por fim.
O rei compareceu ao local, acompanhado por seus mais nobres cavaleiros. Os dois trapaceiros ergueram o braço, fingindo segurar alguma coisa. Aqui estão as calças. Cá está o casaco. E aqui, o manto - disseram. - O tecido é tão leve como teia de aranha. Parece que não se tem nada no corpo. Nisso está a grande virtude dele ... O rei tirou a roupa, e os trapaceiros fingiram dar-lhe, peça por peça, o traje novo.
Como ficam bem! São esplêndidos estes novos trajes! Que padrões! Que cores! - era o que se ouvia ao redor.
E assim o rei desfilou na procissão, enquanto nas ruas e nas janelas todos comentavam: meu Deus, como são lindos os novos trajes do rei! Como lhe ficam bem!
Todos dissimulavam, ocultavam que não estavam vendo coisa alguma, pois do contrário, teriam passado por imprestáveis para o cargo que ocupavam, ou se revelariam néscios. Nenhuma roupa do rei havia despertado tanta admiração.
O rei está nu! - disse uma criança.
Meu Deus! Falou a voz da inocência! - disse o pai da criança. E cochichou para outro o que a criança dissera. Ele está nu - correu de boca em boca. - Uma criança está dizendo que ele está nu.
Ele está nu! - clamava, por fim, todo o povo.
O rei sentiu um abalo, pois lhe parecia que falavam a verdade. “Agora tenho que agüentar, até o fim, a procissão - murmurou ele - Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes, continuaram a segurar o manto que não existia”.
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Filosofia e Ideologia
No item anterior, vimos que a crítica exerce a função de desnudar a realidade, descobrir a gênese do processo ou o conteúdo do silenciado. Pois bem, o “conteúdo silenciado” nada mais é do que a própria ideologia. Qual o conceito de ideologia? Qual sua função? É o que veremos agora.
Como a palavra crítica, ideologia é também uma palavra nova. Foi criada ao tempo de Napoleão, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, para significar a ciência das idéias, compreendendo seu estudo e seu desenvolvimento. Posteriormente assumiu outros sentidos.

Concepção geral de ideologia
No sentido amplo, ideologia é o conjunto de idéias, doutrinas, concepções e opiniões sobre algum ponto polêmico. Ideologia é conjunto sistemático de conhecimentos intencionalmente destinados a orientar ações imediatas[10]. Neste sentido, se enquadram as seguintes perguntas, entre outras: Qual é a ideologia desta escola? Qual a ideologia desse partido?

Concepção estrita de ideologia
Marx teve um mérito muito grande para a evolução histórica e semântica da palavra ideologia. Deu-lhe um conteúdo conceitual de ordem econômica e política. Ainda é uma caracterização imperfeita, pois reduz a amplitude existencial do homem à esfera do econômico e do político. Mas este passo inicial teria que ser dado.
Nesta perspectiva, a ideologia é uma consciência invertida[11] da realidade, elaborada pela classe dominante, com a finalidade de mascarar a divisão de classe, mantendo assim a situação vigente de dominação. Nesta visão, a ideologia é algo inteiramente negativo e insidioso.
A citação, abaixo, de Marilena Chauí, é uma explicitação e atualização do pensamento marxista.

O que é ideologia?
...ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, e que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade, dividida em classes, uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. (CHAUI. 1980 : 113).
Nesta citação, identificamos as seguintes proposições explícitas ou implícitas, sinalizando que: a) ideologia não é mentira. Mentira é pensar uma coisa e dizer outra[12]– nela não há representação; b) ideologia é um discurso lógico, sistemático e coerente; c) ideologia é prescritiva: impõe o que se deve pensar e como se deve pensar, o que se deve valorizar e como se deve valorizar, o que se deve sentir e como se deve sentir, o que se deve fazer e como se deve fazer; d) ideologia assegura a coesão social e a aceitação, sem críticas, das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da “vontade de Deus” ou do “ dever moral” ou como decorrência da ordem natural das coisas; e) a ideologia tem a função de justificar as diferenças sociais, sem jamais atribuí-las à divisão de classe – que é o conteúdo silenciado (no caso propositalmente, para enganar).
Glosando o texto de Marilena Chauí com as idéias de Pierre Furter p. 51-60 - Maria Lúcia Aranha, p. 61-68, Gilberto Cotrim, p. 56-61, podemos relacionar, na perspectiva mar-xista, as seguintes características nefastas da ideologia:
Naturalização: considerar como obra da natureza, situações que, na realidade, são pro-duzidas pela ação humana e, como tal, são situações históricas e não naturais: quando, por exemplo, se considera-se natural que a sociedade seja dividida entre ricos e pobre, ou que uns nasceram para mandar e outros para obedecer
Anterioridade: em razão desta anterioridade, deste apriorismo, como assinala muito bem o texto citado, a ideologia predetermina o pensamento e a ação, desprezando a situação histórica, a realidade social vigente e a prática, na qual cada pessoa se insere, vive e produz. È em nome desta anterioridade e deste apriorismo que se introduz no imaginário do povo a concepção de que as idéias caem do céu, ou são gestadas nas cabeças de pessoas privilegiadas, quando, na realidade, sua matriz é a luta do ser humano para conseguir sua subsistência. Generalização (abstração): Aqui temos duas linhas de raciocínio: a) a ideologia tem como finalidade produzir um consumo coletivo em torno a certas idéias, valores, normas, regras e preceitos. Com isto, generaliza para toda a sociedade aquilo que corresponde aos interesses específicos dos grupos ou das classes dominantes; b) a ideologia desvincula as idéias do plano real para o plano da abstração. Quando se diz: “o trabalho dignifica o homem”, isto é uma abstração, pois não está de acordo com a realidade. Quando se faz afirmação desse tipo, é que se desconhece (geralmente de propósito) a gênese do processo, pois o trabalho alienado ou do “bóia-fria” não dignifica ninguém..
Lacuna:
“...a ideologia desenvolve-se sobre uma lógica construída na base de lacunas, omissões, de silêncios e de saltos. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar, falsear em vez de esclarecer, esconder em vez de descobrir. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas ‘verdades’ devem parecer[13] naturais, plenamente justificadas, válidas para todos os homens e para todo e sempre”.
“A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois, sendo missão da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria”. (CONTRIN, 1997 : 57-58).
Exemplo de lacuna: “Todos têm direito à educação”. O discurso não diz que esse “todos” só se refere aos que possuem condições de subsistência não só material mas cultural.
Essa afirmação é lacunar, ao apresentar como universal aquilo que não beneficia a todos: os pobres, por diversos motivos, acabam ficando de fora. Por muito lógicas que sejam as justificações que se dêem, o que permanece oculto é que há contradição entre os que, com seu trabalho, produzem a riqueza material e cultural e os que se apossam dessas riquezas. Portanto, analisando a gênese do processo, descobre-se que a educação está restrita, em grande parte, aos que detêm o poder.
Alienação: o conceito de alienação tem vários sentidos. No sentido jurídico, alienada é a pessoa que perde a posse de um bem ou de um direito; para a psiquiatria, é a pessoa que perde a dimensão de si na relação com os outros; no sectarismo, radicalismo e idolatria, perde-se a autonomia. Etimologicamente, alienação vem do latim “alienare” → “alienus” que pertence ao outro; “alius” é o outro. Alienar é transferir para o outro aquilo que é seu.
Para os neo-marxistas, alienação é o estado da pessoa que retira as explicações de sua situação, não do mundo objetivo, mas de um mundo que não existe ou é transcendente. A alienação desvia os dominados de encontrar a gênese do processo, de ter uma consciência correta da realidade. Sua consciência da realidade é invertida, por imposição da classe dominante. Como exemplo, poderíamos aduzir a seguinte pergunta: qual a causa de sua pobreza? Geralmente as pessoas não sabem identificar a verdadeira causa de sua situação, colocando-a onde ela não está: porque Deus não quis, ou, porque não gosto de trabalhar, ou, não sei administrar; quando sabemos que a causa, na maioria absoluta das vezes, está na sociedade exclusivista, competitiva, dominadora.
Mito e Mistificação: Mito aqui é tomado em sua concepção popular, isto é, como meio de levar a pessoa ao terreno do imaginário puro[14]. Mistificação vem de mistério; é tornar uma coisa misteriosa, inacessível ao comum dos mortais.. Tanto o mito quanto a mistificação produz a fuga dos verdadeiros problemas e de suas adequadas soluções. Exemplo de mito: riqueza, prazeres, conforto, como fatores únicos de felicidade; globalização, livre mercado como solução para os problemas humanos. Exemplo de mistificação: democracia[15] é regime político para os deuses e não para os homens, filosofia é só para os inteligentes. Falta de chuva é um mistério, logo, vamos rezar para chover, pois só Deus pode desvendar mistério.
Coisificação: A coisificação tem dois sentidos:
a - tratar o homem como coisa. Exemplo: Ronaldinho é Nike. Sua saúde não tem importância diante do prejuízo da Nike;[16]
b - transformar o provisório em permanente. Exemplo: ”o mercado resolve tudo”; ou a corrupção nasceu com o Brasil, logo...
Inversão causa e efeito: Exemplo: “A preguiça causa a pobreza”. A psicosociologia mostra o contrário.
Supervalorização da teoria ou inversão da relação teoria/prática:
Numa visão praxeológica do mundo, a prática está impregnada de teoria. Ambas estão em pé de igualdade, tendo o mesmo valor.[17]
Pois bem, a ideologia, no afã de mascarar a realidade, coloca a teoria acima da prática. Se a teoria é a iluminadora da prática, como ensinara Kant, ela é mais importante do que a prática; sendo a prática mera aplicação da teoria – é o que insufla a ideologia. Exemplo: “dificilmente você encontra a estátua de um operário nas praças, em contraposição, de intelectuais, se encontram muitas”. A tese de que as idéias movem o mundo é altamente ideológica.
Concepção de ideologia na visão de Gramsci
A posição de Antonio Gramsci não é excludente à de Marx, mas complementar. Ele distingue duas espécies de ideologia: ideologia arbitrária e ideologia orgânica. A primeira é a própria concepção de Marx, já exposta. Quanto à segunda espécie de ideologia, Gramsci julga-a historicamente necessária porque ‘organiza as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.
Nesse sentido – pondera Gramsci – a ideologia se manifesta “ implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas e que têm por função conservar a unidade de todo o bloco social”[18]
Concepção de ideologia na visão de Mannheim
Em sua importante obra Utopia e Ideologia publicada pela primeira vez em 1928, este famoso sociólogo distingue duas espécies de ideologia: particular e total. A ideologia particular se identifica com a conceituação de Marx. .
Como ideologia total, Mannheim entende “um conjunto de idéias que mantêm a ordem estabelecida”, em que não entra nenhum juízo de valor. É um fato social que não foi elaborado nem por um indivíduo, nem por um grupo de intelectuais, como no caso da ideologia particular, mas que, muitas vezes, existe como consciência possível da realidade.
Tanto na perspectiva de Gramsci quanto na de Mannheim, a ideologia oferece algumas qualidades que passamos a explicitar. Primeiramente, podemos dizer que ela favorece o diálogo. Por ser provisória, a ideologia permite um diálogo proveitoso “aqui e agora”, tendo em vista a prática imediata. Em que pese ser uma interpretação provisória da realidade, ela ajuda a entender a ação e nos induz, ou, pelo menos, sugere um engajamento nela. Neste sentido, a ideologia seria uma aposta, um risco, mas um risco necessário. Não se proceder assim, males piores poderiam advir. É neste sentido que dizemos que Partido Político bom é aquele que é guiado por uma ideologia. Neste sentido, também, Gazuza pôde cantar: “Quero uma ideologia para viver”.
Notas de rodapé
[1] O que faz a diferença entre a indução pré-científica e a científica é a quantificação ou matema-
tização das variáveis ou do conhecimento. Até aí, a matemática era usada somente como meio de educação, dado que o homem, ser espacial que é, tem de se localizar no espaço.
[2] Rever o Cap anterior sobre este assunto.
[3] Há uma diferença entre instrumento técnico e tecnológico, o primeiro aumenta a força física, o segundo, aumenta a precisão.
[4] Cientificismo é a crença infundada de que a ciência conhece tudo e, assim, é capaz de resolver todos os problemas. É uma espécie de magia, com poderio ilimitado sobre as coisas e os homens; um tipo de Religião, sito um conjunto doutrinário de verdades intemporais, inconcussas, inquestionáveis.
[5] Não estamos advogando que a filosofia perca a característica da subjetividade que é um dos marcos de sua individualidade, mas que se diminua ou se elimine seu subjetivismo que é um vício
[6] Este sentido se enquadra no pensamento de Kant. A propósito do verbo decidir, podemos asseverar o seguinte: quem não possui uma utopia, quem não tem na cabeça uma saída para a questão, quem não é detentor de um modo fundamentado e coerente de fazer, ou seja, quem não é utópico, mas “utopista”, não tem direito de criticar. Se a crítica só se contenta com seu lado negativo, sem apontar uma saída, não passará de um fogo fátuo ou de um sino que retine e nada mais; ao lado de denunciar, ela não tem direito de criticar, de denunciar, com ensina Paulo Freire.
75 Aqui se insere a posição da Escola de Frankfurt, para a qual, a crítica deve impedir que os seres humanos se abandonem irrefletidamente às idéias e formas de conduta instituídas socialmente e que as ações e fins do ser humano não devem ser produtos da necessidade (KOHAN, 2000 : 26).
Também aqui se identifica o pensamento de Michel Foucault, para quem a crítica ‘é tornar difíceis
coisas fáceis, é ‘desnaturalizar ‘ o mundo, a desbanalizar o quotidiano, torná-lo mais complexo, menos óbvio. A crítica nos força ver o mundo como ‘se fosse a primeira vez’ (idem, idem)
[8] Neste terceiro sentido, situa-se o pensamento de Larrosa, para quem , a crítica é a abertura do espaço ético ‘à inquietude, à sensibilidade, à atenção’, situando-se ‘fora das morais afirmativas, não qües-
tionando uma moral para sua troca por outra, não denunciando uma falsa moral e o “advenimento” da moral verdadeira’; afinal a crítica é a ‘afirmação do valor da não-conformidade, da insatisfação, da abertura’ (KOHAN, idem, p. 27).
[9]Na filosofia tradicional, afirmava-se que a verdade era adequação entre a mente e a realidade ex- terna; nesse sentido, crítica pode ser oposição entre verdade e erro. No sentido atual de verdade,
não (consultar cap. 10).
78 A ideologia não dá o braço a torcer. Se ela se mostrasse defeituosa, ninguém aaceitaria. 79 Não é a toa que um gaiato afirmou que Deus criou o mundo e o diabo veio e o colocou de cabeça para baixo.
[12] No terreno do fazer, a mentira se transforma em dolo – que é pensar uma coisa e fazer outra, com o
o fito de enganar.
[14] Na concepção histórico-filosófica, ver o cap. 03
[15] De fato democracia perfeita não existe. Toda democracia é um projeto que está em processo de realização. Seu sucesso dependerá muito da educação do povo.
[16]Referência à Copa de Futebol da França em 2002, em que a Nike patrocinava a CBF e impôs a participação de Ronaldo, o fenômeno, em condições de saúde adversa para o atleta.
[17] Em nosso livro, Dialética - A Terceira Via da Educação: De Heráclito a Paulo Freire, cap.02, tratamos largamente deste assunto.
[18] Ver Concepção dialética da História, 6ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

CARACTERÍSTICAS DA FILOSOFIA (CAP. 04)

CAPÍTULO 04

A crítica é o sal da filosofia. Como o sal que não salga é inútil,também inútll é a filosofia que não critica (Geraldo)

CARACTERÍSTICAS, CONCEITUAÇÃO E DIVISÃO DA FILOSOFIA
Filosofia não é um conhecimento qualquer. Não é uma tribuna livre onde se chega e se dizem coisas de somenos, sem coerência e sem consistência. Ela é detentora de “status” próprio, de individualidade diferenciada. Drapeja em seu mastro um pavilhão de características. Característica é um sinal ou conjunto de sinais que diferenciam as coisas ou os conhecimentos. Características da filosofia são, pois, aqueles sinais que a diferenciam dos outros conhecimentos. As três primeiras características: totalidade, radicalidade e criticidade são primordiais e de importância tão grande que podemos considerá-las verdadeiras dimensões da filosofia. A seguir, relacionaremos as principais características da filosofia, com os respectivos e devidos comentários:
Totalidade - Esta característica expressa o desejo profundo do ser humano de ter uma visão de conjunto da realidade. Não se trata de o filósofo conhecer especificamente todos os aspectos da realidade, mas de ter uma visão de conjunto, uma visão onímoda. O todo ou o global, é Morin, p. 37 quem diz: “ é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou organizacional... O todo tem qualidades ou propriedades que não são encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras... Marcel Maus dizia: ‘É preciso recompor o todo’. É preciso efetivamente recompor o todo para conhecer as partes”. Na mesma página, Morin cita Pascal: “...considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo...” E continua Morin na mesma página:
“...tanto no ser humano quanto nos outros seres vivos, existe a presença do todo no interior das partes: cada célula contém a totalidade do patrimônio genético de um organismo policelular; a sociedade, como um todo, está presente em cada indivíduo, na sua linguagem, em seu saber, em suas obrigações e em suas normas.Dessa forma, assim como cada ponto singular de um holograma contém a totalidade da informação do que representa, cada célula singular , cada indivíduo singular contém, de maneira ‘hologrâmica’, o todo do qual faz parte e que, ao mesmo tempo, faz parte dele.”
Radicalidade - Também é uma aspiração do ser humano chegar à raiz das coisas, não se contentando com a periferia ou superfície das mesmas. Ser radical é proceder como a raiz de uma árvore com sua haste principal e robusta caminhando para o centro da terra, mas sem abandonar suas ramificações, pois estas são partes e complemento daquela. Voltando ao exemplo da medicina, ela não está, de maneira geral, preocupada em ir à raiz da doença que, muitas vezes, está ligada a uma crise existencial que, não solucionada, impede qualquer cura puramente biológica. Vê-se que radicalidade é uma virtude; não é um vício a ser evitado, portanto; ao contrário de radicalismo ou de sectarismo que são vícios: ambos são um caminhar e um agir com olhos vendados, não raro, dando murro no escuro. Criticidade - Esta característica é tão íntima da filosofia como a semente é íntima da fruta; em parte já tratamos dela no capítulo 02, e dada sua importância e suas implicações, será ela objeto de um estudo à parte no capítulo seguinte. Engajamento - Graças às críticas de Marx e suas invectivas contra a filosofia tradicional, que só levava a pensar o mundo, sem preocupação de transformá-lo, hoje se insiste nesta característica: o engajamento. Filosofia já não é mais “aquilo com qual e sem o qual, fica tudo igual a”. Ela carrega, no mundo contemporâneo, um forte apelo de transformação da realidade - uma filosofia da práxis. Vê-se que esta característica só se tornou explícita a partir de Marx, e sua importância cresce cada vez mais. Subjetividade/intersubjetividade - Seja qual for a filosofia que se tenha, ela é sempre a manifestação da subjetividade - um conhecimento que, mesmo se relacionando com o mundo objetivo, tem claramente sua matriz no sujeito que conhece. Não confundir subjetividade com subjetivismo que não tem nenhuma relação com o mundo externo. Assim, o sujeito torna-se o único padrão, paradigma ou baliza de julgamento. Ele é a referência de si mesmo. É o que em psicologia se chama “sujeito inflacionado”. Ah! Também é bom notar que, pelo mesmo motivo, subjetividade nada tem a ver com o viés do” achismo”, com “opinionite”, expressões que não têm guarida no cenário filosófico. Quanto à intersubjetividade, devemso lembrar que não se faz filosofia isoladamente, pelo menos, no mundo de hoje. Ela se faz dialogicamente em comunidade de pensamento.[1]
Teoria - Ainda que, a longo prazo, a filosofia seja o único conhecimento capaz de salvar o homem na “ corda-bamba” da vida, da hecatombe universal - tendo, portanto, uma finalidade prática - ela é um conhecimento teórico: sua matéria prima são as idéias, melhor expressando, as dúvidas, os problemas, como veremos logo abaixo.
Dúvida - Dúvida é a suspensão do juízo diante de duas afirmações (ou proposições) correlatas. A partir de Descartes, começou a crescer a convicção de que a finalidade da filosofia não era a posse da verdade, mas sua busca e que, para isso, nada melhor do que empregar-se o método da dúvida que o próprio Descartes se encarregou de criar ou aperfeiçoar[2]. Temos duas espécies de dúvida. Dúvida comum - absoluta - que é a dúvida do ignorante - nesciente - e a dúvida metódica, que é a dúvida de quem sabe; sendo um recurso estratégico para aprofundar o conhecimento da realidade. Esta última é que foi crida por Descartes, na seqüência de Santo Agostinho.
Numa linguagem rigorosa, podemos dizer que a dúvida, o problemático, é, à primeira vista, a matéria prima da filosofia.
Com a palavra o prof. Lipman:
“...a filosofia se ocupa com conceitos essencialmente contestáveis. A filosofia é atraída pelo problemático, pelo controverso, pelas dificuldades conceituais que se escondem nas frestas e interstícios de nossos esquemas conceituais. Não é que os filósofos estejam inclinados a celebrar apenas essas dificuldades e não fazer qualquer esforço para removê-las, propondo esclarecimentos e elucidações. É que, simplesmente, eles reconhecem tais esforços como inerentes ao sisifismo: o problemático é inesgotável e se reafirma, desumanamente, quaisquer que sejam nossos esforços.
A filosofia investe contra o problemático, como a mariposa é atraída pela chama, ou como o combatente se lança à jugular de seu oponente. Não é incomum, observar filósofos, procurando suas próprias jugulares. O significado dessa procura pelo problemático é que gera pensamentos. (LIPMAN, 1990 : 51-52).
Assim procedendo, está a filosofia realizando um dos impulsos fundamentais do ser humano, que é o impulso da curiosidade, e também está realizando uma de suas dimensões fundamentais, que é a radicalidade.
Intuição/dedução - Intuitivo é o conhecimento que se faz num relance, sem intermediação, sem interferências; ele se dá sem raciocínio; em oposição, dedutivo é o conhecimento raciocinado, intermediado; faz-se por inferências que se tiram de princípios gerais.
A filosofia é um conhecimento que nasce das intuições de princípios que, submetidos ao raciocínio dedutivo, chegam a conclusões - nunca dogmáticas, mas passíveis de dúvida, de problematização.
Compreensão – A filosofia compreende. Ver o que foi escrito a propósito no cap. 02, item 06 e no cap. 03, p. 48 quando tratamos da característica da “Compreensão”
Sistemática - A filosofia é sistemática. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião, à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado, para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propagan-da.
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação[3] racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático, porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
... a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana. (CHAUI, 2006 : 21).[4]
Interdisciplinaridade[5] - A filosofia é interdisciplinar, ela é necessária para se pensar as outras disciplinas.
O problema atual – diz Lipman – não está bem na expansão da ciência em suas especializações, o que é louvável, mas no fato de estas perderem seu
...invólucro filosófico que as manteria unidas. Quando uma disciplina imagina que sua integridade repousa em livrar-se de suas considerações epistemológicas, metafísicas, estéticas, éticas, lógicas, é que se torna meramente um corpo de conhecimento e procedimentos alienados...
O que está surgindo agora é que o pensamento está se tornando o fundamento do processo educacional e que a educação construída sobre qualquer outra fundação... será superficial e estéril”... a filosofia precisa deixar de ser um assunto de universidade e tornar-se uma matéria da escola primária – uma disciplina cuja tarefa é preparar os estudantes a pensar nas outras disciplinas. (LIPMAN , 1990 : 52)
E continua Lipman na p. 55:
... é da própria natureza da filosofia transcender os pontos de vista das disciplinas específicas, ser interdisciplinar e, ainda, ter um senso global de proporção que a coloca numa posição melhor, para formular aqueles objetivos: (...) quando os especialistas em educação e os representantes das disciplinas tentam formular os objetivos da educação, só podem fazê-lo tornando-se filósofos.
Os dias atuais caracterizaram-se como a era dos especialistas. O problema da especialização do mundo científico é que ela conduz a uma pulverização do saber, à perda da visão mais ampla do conhecimento humano.
Nesse sentido, o filósofo francês contemporâneo Georges Gusdorf adverte:
O especialista do tipo tradicional é caracterizado por uma restrição mental sistemática; ele se acantona no domínio estreito que escolheu, e esforça-se por acumular o maior número possível de informações (...) concernentes a uma zona precisa e delimitada.
Nesse contexto, a filosofia passou a ter o papel, entre outros, de recuperar a unidade do saber, de questionar a validade dos métodos e critérios adotados pelas ciências. Isto é, passou a desenvolver o trabalho de reflexão sobre os conhecimentos alcançados por todas as ciências, além da procura de respostas à finalidade, ao sentido e ao valor da vida e do mundo”. (COTRIM, 1997, : 51).
Coerência - Se há um ramo do saber que deva ser coerente, este é a filosofia. Tanto isto é verdade que, quando se pergunta o que é necessário para ser filósofo, umas das principais idéias que nos vem à mente é que se deva ter coerência. De fato, é isto que se nota nos grandes filósofos. Por exemplo: Platão ensinou muita coisa que hoje julgamos absurda. Entretanto, há algo que não se pode negar em Platão: sua coerência inquestionável.
O que é coerência? Coerência é a característica de, colocando-se determinados princípios - premissas - tirar-se conclusões pertinentes. O povo entende isto muito bem quando diz, por exemplo: “quem semeia vento, colhe tempestade”.
Para ilustrar o que seja coerência[6], apresentamos a seguinte metáfora colocada por Cirne-Lima:
A filosofia é um grande jogo de quebra- cabeça. No jogo de quebra-cabeça, temos que encaixar cada peça com as pedras vizinhas, de modo que os contornos de cada uma coincidam com os contornos das peças vizinhas, formando uma imagem. O jogo de quebra-cabeça consiste em inserir peça por peça, uma na outra, com ajuste perfeito de contornos, até que todas as peças estejam corretamente colocadas e a imagem final, coerente e com sentido, ficando visível. Se faltam peças, o jogo não foi jogado até o fim. Se faltam peças, o jogo foi desfalcado e a imagem final ficará incompleta... Se jogarmos até o fim, e se o jogo não estiver desfalcado de peça, todas as peças estarão, então, devidamente encaixadas, não faltarão peças, não sobrarão peças, e a imagem global estará clara e visível”. (CIRNE-LIMA, 1996 : 12-13).
Auto-correção – Diferentemente de outros seguimentos do saber, a filosofia é auto-crítica, ela se corrige a si mesma. Ela provoca sempre o eterno retorno, não dos fatos, mas dos problemas; encarna perfeitamente o Mito de Sísifo[7]. Nunca chega à posse da verdade.
. Ao final da exposição de algumas características da filosofia, temos que lembrar que não se trata bem de aprender filosofia, mas de se educar filosoficamente, e educar-se filosoficamente consiste em a pessoa encarnar estas características. Exemplos: uma pessoa que só critica quando tem critérios ou uma utopia[8] na cabeça, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que só faz generalizações fundamentadas (conhecimento), esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que examina a realidade, o fato, de todos os lados, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que não se contenta com as aparências da realidade, com seus efeitos imediatos, esta é uma pessoa educada filosoficamente.
Uma pessoa que distingue as coisas, que não mistura, por exemplo, alho com bugalho, gato com lebre, direita com esquerda, etc, esta é uma pessoa educada filosoficamente.

Conceituação e divisão da Filosofia[9]
Ao longo de seus quase três mil anos, várias tentativas de definição de filosofia têm surgido. Inventariadas essas definições, conclui-se que elas não são unívocas - sentido único - também não são equívocas - sentido completamente diferente. Afinal são definições analógicas. Em parte, diferem e, em parte, se assemelham-se. A filosofia continua um termo polissêmico.
Para conceituar filosofia, a História muito nos ajudará.
O documento mais antigo que menciona a palavra, em sua forma verbal, é a passagem de Heródoto - século V a.C. - em que narra o encontro de Sólon com Creso, rei da Lídia. Assim o rei saudou o ateniense: “A fama da tua sabedoria chegou até mim e soube que tu, filosofando, visitaste grande parte do mundo para observar”.
Vemos que a expressão “para observar” encerra a explicação da palavra “filosofar”. O que torna Sólon um filósofo é a circunstância de viajar, não como um comerciante, ou um guerreiro que tem em vista objetivos exclusivamente práticos que se enquadram no patamar do útil externo, mas o fato de ser ele um observador. Tucídides e Isócrates (século V a.C.) usaram a palavra “filosofia”, para significar uma cultura geral, teórica, em oposição a uma cultura teórico-prática, que é própria da linguagem científica.
A seguir, damos a palavra ao tribuno e filósofo Caio Túlio Cícero - aquele mesmo que ensinou que a História é “a mestra da vida”.
Confesso - diz Cícero - que o nome ‘filosofia’ é moderno. Afirmo, todavia, que a coisa ‘filosofia’, que este nome significa, é muito antiga ... Este nome chegou até a época de Pitágoras. Tendo vindo - Pitágoras - a Fliunte, ali discutiu douta e longamente com Leonte, príncipe dos Fliaseus. Admirado por seu engenho e eloquência, Leonte perguntou a Pitágoras que arte professava.
(Pitágoras) respondeu-lhe que não sabia ciência alguma, mas que era filósofo. Ante a novidade do nome, Leonte admirado, perguntou-lhe quem eram os filósofos, e qual a diferença entre eles e os demais homens.
Respondeu-lhe Pitágoras: A vida humana se assemelha a uma feira, das que se realizam na temporada dos jogos, com grande aparato de todos os helenos. Pois nela encontramos três tipos de pessoas: uns, com exercícios de seus corpos, buscam a glória e a beleza; outros, a ela vêm em busca de ambição e dinheiro, o que conseguem através de compras e vendas; outros, enfim - de mais nobre e generosa linhagem - nem buscam dinheiro, nem aplausos, nem lucro, mas a feira visitam apenas para ver e considerar o que lá se faz e de que modo. O mesmo acontece conosco: à maneira dos que vêm à cidade para uma célebre feira, também nós que viemos a esta vida e que somos descendentes de uma natureza superior (assim nos dividimos): uns servem à glória; outros, ao dinheiro; e são muito raros os que - entre os homens - desprezando todas as coisas humanas dedicam-se ao estudo da Natureza.
Estes se chamam estudiosos da sabedoria, ou - o que é o mesmo – filósofos, e, assim, como em uma feira, é mais nobre e liberal a contemplação isenta de lucro; assim na vida, a contemplação e o conhecimento das coisas está muito acima de todos os outros empregos da atividade”. (LATERZA, 1971 : 114-115. V. I).
Muito nos ajudará a entender o que é filosofia a metáfora do quebra-cabeça apresentado por Cirne-Lima já exposta no, páginas atrás, quando, a propósito das características da filosofia, falamos da coerência
Definição de Filosofia
Para definir filosofia, talvez, melhor mesmo seja adotar uma posição negativa: é dizer o que não é filosofia. Depois de inventariar essas negatividades, o que restar é filosofia. Vamos lá: filosofia não é mito[10] (este é arquitetado somente pela fantasia); filosofia não é religião, o instrumento desta é a fé nas verdades reveladas, ao passo que a filosofia se baseia na razão; Filosofia não é ciência (de que será tratará no cap. 04); filosofia não é história, mas reflexão sobre o sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo; filosofia não é ideologia[11] (de que se tratará no cap. 05).
Quem sabe, podemos agora, numa atitude positiva, apresentar uma ou outra definição de filosofia: A primeira definição formal de filosofia foi dada por Aristóteles: “ciência dos primeiros princípios e das primeiras causas”. Esta definição se tornou superada com o advento da ciência no período da Renascença. É a ciência que trata das causas. Já vimos no capítulo 01, que podemos continuar usando a definição de Aristóteles, desde que entendamos a palavra “causa” como sinalizadora de sentido, de significado.
Até o século XIX, as definições de filosofia seguiram univocamente a definição de Aristóteles, que era baseada no princípio de identidade e na imobilidade do real.
A partir dessa época, ressaltando-se cada vez mais a historicidade e sendo o engajamento considerado uma das características da filosofia, começaram a aparecer outras definições ou tentativas de definição.
A seguir relacionamos algumas dessas definições, lembrando que todas elas se referem à filosofia no sentido estrito: “Sistema lógico de idéias e conceitos, acerca da natureza, da sociedade e do homem, e do lugar deste último no mundo, tornando-o apto a assumir uma atitude diante dele”.
“ Esforço sistemático e crítico que visa a captar a “coisa em si”, a estrutura oculta da coisa, e descobrir o modo de ser do existente[12].
“ Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido”.
“ Visão de mundo para a ação”.
“Conquista da situação em que nos encontramos”.
“Disciplina que nos prepara a pensar outras disciplinas.”
“Exame auto-corretivo dos modos alternativos de dizer, fazer e agir”.
“Porta-voz e consciência de uma época”.
Encerrando este item, é bom lembrar que todas estas definições são falhas. Aliás, devemos reconhecer que a filosofia é indefinível, pois definir é colocar limites. E a filosofia não tem limites. Seu limite é a vida, é a História - um mar sem fim.

Divisão da Filosofia
Para se dividir a Filosofia, tem-se de levar em conta os diversos aspectos, sob os quais se faz a divisão:
1 - Aspecto Histórico
Sob este aspecto, a Filosofia Ocidental se divide em:
a - Filosofia clássica
b - Filosofia medieval
c - Filosofia moderna[13]
A filosofia moderna pode se dividir em filosofia mecanicista (que é estática, nada muda) e filosofia dialética (que vê a realidade com sendo dinâmica), como veremos no Apêndice).
A filosofia clássica estava preocupada na solução da antinomia “Uno x Diverso”.
A filosofia medieval estava preocupada em resolver a antinomia “Fé x Razão”.
A filosofia moderna assume a missão de desfazer equívocos provenientes da instituição e crescimento das ciências particulares: intuição versus dedução e experiência versus experimentação[14].
A filosofia clássica e a medieval tem uma visão estática da realidade, em que pese a posição diferenciada de Heráclito, Sócrates, Platão, Abelardo e outros. A realidade não muda em sua substância. A mudança, quando acontece, é acidental. Já a filosofia moderna aceita que a realidade é dinâmica. Tudo muda, também na substância. Como
nem todos concebem o movimento da mesma forma, temos que fazer uma distinção na Filosofia Moderna. Uns filósofos são mecanicistas, outros são dialéticos.[15] Os primeiros concebem o movimento em sua forma retilínea, provocado por um agente externo (Deus ou a natureza). Os segundos acham que o movimento é provocado por um agente intrínseco, endógeno, chamado contradição. A contradição não é só uma característica do movimento, mas é sua própria substância. A contradição é o motor do movimento.[16]
2 - Aspecto Metodológico
Método, em filosofia, é um caminho que sempre tem um ponto de partida, ainda que nem sempre sinaliza um ponto de chegada. Assim sendo, dividir a filosofia, sob o aspecto métodológico, é apontar seus pontos de partida:
Idealismo se denomina a filosofia que tem seu ponto de partida nas idéias. Há várias espécies de Idealismos, dependendo da localização das idéias. Assunto a ser estudado no Cap. 07.
Realismo é a filosofia que coloca o ponto de partida nas coisas presentes aqui do mundo - ver como será analisado no cap. 08.
Tomismo é a versão realista da Baixa Idade Média, construída por Santo Tomás de Aquino.
Empirismo é a versão do Realismo no século XVII, construída pelos filósofos ingleses.
Positivismo é a versão do realismo no século XIX, construída por Augusto Conte - ver capítulo 09.
Existencialismo. Esta filosofia se contrapõe a todas as outras, também por um problema de origem. Enquanto todas as outras (como se viu na Introdução deste ensaio) colocam a essência antes da existência, o Existencialismo começa tudo com o existente. Primeiro as coisas existem, só depois elas são.O Existencialismo se divide em dois seguimentos:
Pragmatismo que tem como matriz a ação do homem. Esta filosofia, própria dos norte-americanos, não parte das essências, mas restringe tudo à existência da ação do homem. A essência não é importante. Ver cap. 10[17].
O Existencialismo propriamente dito tem como ponto de partida o ser existente, como se verá no cap. 11.
Dialética que será estudada no cap. 12, parte da matriz da motricidade do real.
3 - Aspecto temático
O homem é um ser condicionado - imprintado, diria Popper - para conhecer.
O conhecer - repitamos - é uma conseqüência do ser. Com efeito, como colocar o ser a serviço do homem, de maneira correta e não devastadora, como, não raro, acontece com a tecnologia, se não conhecemos o substrato da realidade, os fundamentos do real. Como, por exemplo, colocar a eletricidade corretamente a serviço do homem, se não conhecemos a natureza da eletrostática. Como colocar corretamente o ar a serviço da navegação se não conhecemos a natureza da aerodinâmica.
Sendo assim, a primeira parte da Filosofia só pode ser a Metafísica, teorizada por Aristóteles e denominada por ele de filosofia primeira, a que trata do ser. Ainda que alguns pensadores modernos e contemporâneos repilam a metafísica, é Ghirardelli quem afirma, todo filósofo, queira ou não, acaba se envolvendo com problemas metafísicos. Há dois problemas clássicos, diz ele, que ainda pertencem ao campo da metafísica. Um deles é a discussão dos universais/particulares; outro, é o da relação corpo/mente. As perguntas, a seguir, são de ordem a metafísica: “O que há na realidade que é conforme aos conceitos universais?” “Como se formam os conceitos mentais em nossa mente? (Ghirardelli, 2005 : 37). - Gnosiologia. Até o tempo de Kant, gnosiologia ( do grego gnosis = conhecimento) foi o único termo a ser usado para designar esta parte da Filosofia que trata do conhecimento. Daí para diante, começou a ser substituído pela palavra “epistemologia”, criada por Kant, para designar especificamente a reflexão sobre o conhecimento científico - a Filosofia da Ciência. Com o passar dos anos, porém, esta palavra lentamente começou a substituir aquela, e toda a teoria do conhecimento. Hoje se usa indistintamente, uma ou outra. Observe-se que estamos tratando de epistemologia como a parte da filosofia que se refere ao conhe­cimento - Teoria do Conhecimento - e não epistemologia como ciência particular que, segundo alguns, foi criada no século XX e já adquiriu maturidade científica.
- Axiologia. A axiologia (do grego axios = valor) é o termo que se presta a designar o valor da pessoa e das coisas. É a filosofia dos valores. Evidentemente, não se trata de valores comerciais e nem diretamente de valores de uso. Trata-se, isto sim, do valor das coisas, enquanto ajudam o ser humano a se realizar como pessoa, isto é, como flor da criação, como endereço necessário e absoluto de toda a natureza cósmica, como caixa de ressonância do universo, como sujeito histórico, crítico e participativo. Daqui se percebe que o termo valor está ligado à questão dos direitos e deveres.
Levando-se em conta que o homem é um ser multifacetado, multidimensional, de múltiplas determinações, como teremos a oportunidade de expor neste livro, é fácil perceber que a axiologia tem um vasto e multicolorido campo de reflexão, acarretando, assim, uma grande variedade de seguimentos e divisões.
O seguimento que trata das ações que respondem aos impulsos primários/sociais do ser humano - ações entre pessoas - chama-se Ética,[18] que é o dever de agir corretamente diante das pessoas. O bem do outro, seu crescimento, principalmente, no nível do ser mais... gente... mais... pessoa, é o critério substancial e absoluto da Ética. Esta palavra vem de ethos que, no grego arcaico, significava “casa” (onde todos vivem ou deveriam viver fraternalmente).

O seguimento que trata do valor das ações sobre a realidade - física - atendendo aos impulsos da reprodução da realidade e da criatividade, chama –se Estética que é o dever do trabalho material ou mental, único meio de transformar este mundo e colocá-lo a serviço do ser humano - dever de trabalhar, transformar, criar ou reproduzir corretamente este mundo.

O seguimento que trata das ações que respondem aos impulsos políticos de governo[19] e organização social da humanidade chama-se Política, que é o dever de governar corretamente[20].

O seguimento que trata das ações que respondem aos impulsos primordiais do ser humano em sua vocação de igualdade de defesa dos direitos e da consciência jurídica dos deveres chama-se Jurisprudência, que é o dever de julgar corretamente.

O seguimento que trata das ações que respondem ao impulso, também social, de ajudar o ser humano em seu processo de “hominização”, isto é, de alcançar a plenitude da vida terrena, denomina-se Pedagogia, que é o dever de educar corretamente.
Como se pode notar, a filosofia, pelo menos, no nível do conhecer e no nível do valer, é claramente útil, pois normatiza, nem que seja à distância, as ações que, indiretamente, são vitais para uma sobrevivência plena e digna do ser humano.
[1] Diálogo aqui não é uma conversa macia, pacífica; como ensinou Paulo Freire, o diálogo deve ser conflituoso, pois, sem conflito não se chega a um consenso, a uma síntese consistente e profícua.
26 Historicamente sabemos que o método da dúvida já estava insinuado por Santo Agostinho, quando
este afirmou: “Se duvido, penso”
[4] Na 13ª ed. M. Chauí trata deste tema na p. 21
[5] A bem da verdade, como aliás já foi colocado, a filosofia é essencialmente transdisciplinar, pois ela
além da disciplina, visa o que está acima da disciplina
[6] È bom lembrar que coerência perfeita só se pode encontrar nos deuses
[7] Zeus condenou Sísifo a rolar uma pedra morro acima, quando a pedra estava quase chegando ao
topo do monte, ele exausto não a sustentava e ela rolava ao pé do monte, tendo ele começar tudo de
novo. Assim procede a filosofia que recebendo tranco de toda parte, não consegue chegar ao cume
da verdade.
[8] Estamos nos referindo á utopia que, tendo em vista, algumas mediações, tem possibilidade de se realizar, e não de “utopismo” que, não vislumbrando nenhu­ma mediação, não se pode realizar.
[9] Ver na Introdução a 1ª nota de rodapé, a propósito de conceitos. “Filosofia é a disciplina que
[10] Tratamos do mito no cap. 03
[11] Estando a ideologia em tudo, ela está na filosofia, mas não se confunde com filosofia, como veremos
[12] As coisas se definem pela essência que é o modo de ser do existente.
[13]Hoje se começa a falar em uma filosofia pós-moderna que consiste em minimizar o papel da razão.
62 A experimentação se baseia em quantidades, a experiência, não.
64 Segundo a dialética moderna, o movimento se faz à maneira de espiral.
[17]O pragmatismo é, de certa maneira, uma filosofia exisencialista.
[18]Tratamos, mais especificamente, da ética em nosso livro: Dialética - A Terceira Via da Educação: de Heráclito a Paulo Freire.
[19] Segundo Gramsci, na companhia de Aristóteles, todo ser humano nasceu para mandar (para ser político).
68 Segundo o psicanalista Alfred Adler, política é o instinto fundamental do ser humano.