domingo, 5 de abril de 2009

CAP. 08 - FILOSOFIA REALISTA

CAPÍTULO 0 8
Não sou um homem, sou uma dinamite (Nietzsche)

FILOSOFIA REALISTA

O Realismo foi sistematizado por Aristóteles[1] (384-322), em contraposição a seu mestre Platão. Aristóteles passou vinte anos na Academia de Platão. “Provavelmente deixou de ser platônico, porém o que há de perene em Platão sobrevive nele”. Aristóteles foi sábio em quase todos os domínios disponíveis na época: ciências naturais, lógica, física, poética, astronomia, ética, política, retórica, psicologia... Aplicou-se sobretudo a assentar as bases da “filosofia primeira”, aquela que, depois, pelo ano 70 antes de Cristo, Andrônico de Rodes chamou indevidamente de Metafísica, nome que ficou na História, em que pese toda sua inadequação, como vimos no capítulo 04. A Aristóteles é atribuída a criação de grande parte da terminologia que ainda se usa na filosofia, como: ato, potência, matéria, forma substância. Para o Realismo, a matéria é uma realidade objetiva e não, simplesmente, uma projeção do mundo das Idéias. Este nem existe. O mundo é uno, e é este que nós apreendemos pelos sentidos. As coisas deste mundo, inclusive o homem, são compostas de dois princípios incompletos: matéria e forma. A matéria é potência e a forma é o princípio da atualização da potência. Exemplo: a madeira está em potência para ser uma mesa; a mesa, por sua vez, é a atualização daquela potência. As coisas não dependem do homem no seu existir. Existiriam mesmo que o homem não viesse a emergir no mundo. No aspecto da gnosiologia, Aristóteles ensina que o conhecimento é sumamente importante pelo fato de ser ele constitutivo da natureza humana. Sem conhecimento não há homem nem mulher. O que é conhecimento? O Realismo foi a primeira filosofia a afirmar que o conhecimento é uma relação entre sujeito e objeto, relação esta que Aristóteles[2] vai chamar de “adequação entre a mente e a realidade”[3]. O ser humano não nasce sabendo. Contrapondo-se a Sócrates e Platão, Aristóteles afirma que o homem nasce sem nenhum conhecimento. Segundo o Realismo, conhecer é ter conceitos (idéias) e os conceitos estão nas coisas, na sua realidade ontológico- gnosiológica. As coisas são percebidas pelos sentidos - externos ou internos - daí o célebre aforismo gnosiológico: “nada chega à inteligência, que não tenha passado primeiro pelos sentidos”
. O esforço de transpor a realidade do nível ontológico para o nível gnosiológico se chama abstração. O termo abstração significa extrair de. Entende-se que não se trata de uma remoção total de uma coisa, mas tirar e deixar. Tirar o que interessa e deixar o que não interessa. O que interessa tirar das coisas é o conceito - idéia - delas, e não a entidade ontológica das mesmas. Vê-se que a idéia de parto não está ausente. Não se trata de extrair idéias de dentro das pessoas
Aristóteles concebe três graus de abstração. No primeiro grau, depois de se destacar a realidade de seu meio, abandonam-se suas características individualizantes, conservando-se, entretanto, suas características sensíveis; no segundo grau, abandonam-se as características sensíveis, conservando-se a matéria quantificável - a massa mensurável - desta realidade; no terceiro grau, abandona-se a massa quantificável e se conserva o conceito - idéia, forma - Para o Realismo, o conhecimento é concebido - não dado - no “ventre” de nosso espírito. É um verdadeiro parto.
Um bom exemplo da criação do conhecimento, dentro de nós, é o trabalho do garimpeiro. Atolado no leito de rios ou córregos, batéia na mão, vai o garimpeiro peneirando a lama ou a borra que retira de seus pés, conservando o que interessa e desprezando o que não interessa, até que surge, reluzente, a faísca de ouro, que ele guarda com todo o carinho.
Quem é o homem? Como já foi dito a propósito das outras coisas, o homem é também composto de matéria e forma. A matéria é o corpo e a forma é a alma. Ligados ao corpo estão os sentidos externos: vista, ouvido, paladar, olfato e tato. Ligados à alma estão os sentidos internos: ao sentido comum (o qual sente que sente, coordena e distingue a percepção dos sentidos externos), acompanham a inteligência, a imaginação, a fantasia, a memória, a afetividade, etc.

Relação entre política e ética
Vimos que Platão identificava política e ética. Aristóteles subordina a ética à política.
Sendo assim, vamos tratar primeiro de política que, para Aristóteles era a “filosofia das coisas humanas”.
Para alicerçar nossas posições neste tema, muito nos valemos de Giovani Reale em sua História da Filosofia Antiga, volume II, das Edições Loyola.
Como bom heleno que era, Aristóteles... “entendia o homem unicamente como cidadão completamente acima da família e do homem individual: o indivíduo existia em função da Cidade e não a Cidade em função do indivíduo”.
Política vem de “polis” que é cidade em grego. A polis está acima do indivíduo, por encerrar o horizonte dos valores humanos.
No volume citado, Reale coloca no pensamento de Aristóteles o seguinte:
“... embora o bem do indivíduo e o bem do Estado[4] sejam da mesma natureza (pelo fato de consistirem, em ambos os casos, na virtude), o bem do Estado é mais importante, mais belo, mais perfeito e mais divino. A razão disto deve ser buscada na própria natureza do homem, a qual demonstra com clareza que ele é absolutamente incapaz de viver isolado e, para ser si mesmo, tem necessidade de estabelecer relações com os seus semelhantes em todo momento de sua existência”.
E continua Reale:
“É no Estado que o indivíduo... é levado a sair do egoísmo , a viver conforme o que é subjetivamente bom, assim como conforme o que é objetivamente bom. Desse modo o Estado, que é o último cronologicamente, é o primeiro ontologicamente, porque se configura com o todo do qual a família e a vila são partes, e, do ponto de vista ontológico, o todo precede às partes, porque o todo[5], e só ele, dá sentido às partes. Assim, o Estado dá sentido às outras comunidades e só ele é autárquico”.
Ainda uma observação sobre a teoria política de Aristóteles. Ele endossa inteiramente a sentença platônica: “Só é homem quem é cidadão”. E vai além, ao afirmar explicitamente: para ser cidadão, impõe-se “tomar parte na administração da justiça e fazer parte da assembléia que legisla e governa a cidade”[6]

A ética aristotélica
No que se refere à ética, vamos somente lembrar algumas posições da imensa obra ética de Aristóteles.
Já sabemos que ele a subordina à política. Para o estagirita, como já era para Platão, a ética está baseada no conhecimento do homem[7]. A ética determina a conduta que convém ao homem de acordo com o que este é. “Viver eticamente é viver em consonância com a natureza ou com a essência humana”. E como a essência imutável do ser humano é a razão, agir eticamente é agir de acordo com a razão.
O ser humano é animado por uma propensão máxima: conseguir a felicidade, a qual consiste na contemplação das idéias e na prática das virtudes.
Agir de acordo com a razão é praticar as virtudes. Virtude, porém, não é uma questão de conhecimento do mundo, mas é uma questão de hábito que só se consegue com a prática de atos.
Original na ética aristotélica é a idéia da mediania, ou seja, a virtude é o ponto intermediário ou o justo meio entre dois vícios, um por excesso e outro por carência, entendo-se que, quando se fala de “excesso, carência e justo meio”, está-se referindo a sentimentos, paixões e ações. “virtude é a justa medida que a razão impõe a sentimentos, paixões, ações ou atitudes que, sem o controle da razão, tenderiam para um ou outro excesso”
Alguns exemplos de mediania:
1) mansidão é a via intermédia entre raiva e impassibilidade, indiferença;
2) coragem é a via média entre temeridade, imprudência e covardia;
3) indignação é a via média entre inveja e alienação, desinteresse;
4) justiça é via média entre ganho e perda, entre cobiça e indiferença (consiste na “justa medida com a qual repartimos os bens, as vantagens e os ganhos” ou justiça é dar a cada um aquilo a que cada um tem direito).
Agir de acordo com a razão é praticar as virtudes. Não se trata propriamente de conhecimento, mas de hábito. E como sabemos, hábito se adquire com repetição de atos. Sem repetir atos virtuosos, não teremos Ética.
Mais uma observação: como a essência humana é imutável, também são imutáveis os valores éticos. O que era bom, continua e continuará bom.

Diversidade de Realismos
O Realismo divide-se sob o ponto de vista temático e sob o ponto de vista gnosiológico.[8]
Quanto ao tema ou sob o ponto de vista ontológico, a nossa posição é que o Realismo[9] divide-se primariamente em Realismo teístico e Realismo materialista e ateístico.[10] O primeiro, às vezes intitula-se, Realismo racional, clássico e, na Idade Média, religioso. Quanto ao segundo, ele também se chama Realismo naturalista, materialista ou simplesmente Naturalismo A teoria de Darwin enquadra-se neste último. Aqui também se insere o realismo [11]materialista de Marx.. O Realismo clássico (que é espiritualista e teístico) foi criado por Aristóteles; o medieval (espiritualista-teístico religioso) foi criado pelo italiano Santo Tomás de Aquino (1225-1274).

Realismo tomista
Do Realismo aristotélico, já se falou alguma coisa. Superficialmente, neste espaço, trataremos do Tomismo ou realismo tomista que, como veremos, é um realismo moderado. Diferentemente da Alta Idade Média, dominada pelo pensamento platônico de Santo Agostinho, a Baixa Idade Média é o grande momento da filosofia aristotélica, consagrada pelo gênio de Santo Tomás de Aquino[12]. Este introduziu algumas modificações no monumental legado de Aristóteles. A primeira se baseia no conceito de criação. Para Aristóteles, o mundo é eterno. Deus não criou o mundo, mas somente o colocou em movimento, como primeiro motor que a tudo move e não é movido. Tomás de Aquino teve que se submeter à revelação bíblica que afirma que o mundo foi criado por Deus. Pelo mesmo motivo, introduziu uma razoável modificação na antropologia aristotélica. O filósofo ateniense tinha, como incerto, o destino da alma. Aquino afirma sua imortalidade. Outra modificação provocada pelo filósofo medieval, é sobre o hilemorfismo - teoria da matéria e da forma - Aristóteles só se contentou em afirmar que a matéria é potência e a forma é o ato desta potência, não chegando a explicitar a relação essência/existência, o que faz que sua teoria do ser não vá muito além do essencialismo platônico ou, como diz Gabriel Marcel: em Aristóteles, “A existência aparece... escamoteada”. Santo Tomás o corrige: a potência é constituída não só pela matéria, mas também pela forma, e o ato é constituído pela existência. Insistindo na categoria da existência, o doutor angélico dá um toque de existencialidade à sua filosofia, distanciando-a sensivelmente da matriz aristotélica.
Também se distancia de Aristóteles quanto à metodologia do conhecimento. Neste item, ele segue Santo Agostinho, quando este ensina que o conhecimento se faz por iluminação divina.
A Santo Tomás se pode creditar também o "Realismo Moderado" que será explicdo mais abaixo.
Vimos que o Realismo se divide, outrossim, sob o ponto de vista estritamente gnosiológico. Esta divisão se prende ao fato de a discussão sobre a essência do conhecimento, a partir do século onze, ter começado a atiçar a curiosidade dos pensadores. Já nos referimos à definição de conhecimento apresentada por Aristóteles: “adequação entre a mente e a realidade”. A discussão se prendeu, sobretudo, ao sentido do termo “adequação”. Para uns, a palavra “adequação” não passava de um simples nome, sem nenhuma ligação com a realidade - é o Nominalismo. Para outros, era somente um conceito, portanto, fruto de uma elaboração mental, mas sem maiores vinculações com a realidade - é o Conceitualismo.
Para outros, exageradamente, presos ao princípio de identidade, o termo “adequação” significava, de fato, identidade. Exemplo: o conhecimento que tenho da lua corresponde exatamente ao satélite da Terra, sem nenhuma discrepância. Nesta interpretação, o conhcimento é certo, absoluto e dogmático - é o Realismo Exagerado. Finalmente, temos aqueles, entre os quais Santo Tomás, que pensam que o termo “adequação” significa semelhança. O conhecimento é uma relação de semelhança entre “a mente e a realidade”. Conhecemos através de imagem. O que conhecemos da lua não é a lua propriamente, mas algo semelhante à lua - é o Realismo Moderado, mencionado linhas atrás.

Outras considerações sobre o Realismo
No Realismo clássico (que é espiritualista teístico), o homem é composto de corpo e espírito, não havendo superioridade de um sobre o outro.[13] É tão importante o espírito quanto o corpo. A natureza humana é a mesma em toda parte, apesar da diversidade de meios ambientes e de circunstâncias históricas. A racionalidade é o mais elevado atributo do homem, devendo conservar a primazia para controlar seus instintos de acordo com finalidades previamente escolhidas. Os homens são livres, mas devem aprender a dominar seus apetites. O homem é um conjunto de potencialidades, ligadas, umas aos sentidos externos, outras aos sentidos internos. Ambos os tipos devem ser desenvolvidos e colocados em ato pela educação. O homem é um ser de natureza cognoscente. Tal a ontologia, tal a teleologia, isto é: tal é o ser do homem, tal será sua finalidade. Por outra, o homem deve realizar sua essência. Se o conhecimento faz parte da essência do homem, conseqüentemente sua finalidade é conhecer. Quem não conhece não é. O homem nasceu para conhecer... as idéias que estão nas coisas deste mundo e que devem ser abstraídas destas coisas. Dada a influência platônica e cristã, o Realismo medieval tomista, dá mais importância ao lado espiritual do ser humano. Para o Realismo naturalista o homem é só corpo. As idéias são segregadas do cérebro, como a bilis é segregada do fígado. O conhecimento tem como finalidade alcançar o poder (Bacon). Poder de domínio sobre o mundo para colocá-lo a serviço do consumismo.
Quanto ao tema da verdade, o Realismo, em geral, categoriza que a verdade é eterna. E ela é baseado no mundo físico e social. O Realismo naturalista insiste no conhecimento das leis do universo e da matemática, como meio simbólico, abstrato e preciso para descrever as leis que regem a ordem do mundo.

Crítica à filosofia realista
Enquanto subversão a algumas teses do Idealismo, o Realismo merece todos os aplausos, entretanto, à maneira da filosofia idealista, o Realismo produz também a aristocracia do intelecto. Reduz o ser humano à esfera do racional. O que interessa é a potenciação humana na razão. Abre caminho para a mecanização e robotização do ser humano, resvalando assim no tecnicismo profligada por Paulo Freire. “O intelecto é apenas um aspecto da personalidade de um homem. E, embora o comportamento racional seja indispensável ao progresso humano, o lado afetivo é inconfundivelmente pessoal não lhe pode ser subordinado com facilidade”.
Vamos ressaltar alguns pontos a serem criticados:
1 – “o homem é composto de matéria e forma”. Já não podemos mais aceitar este dualismo rígido do ser humano: corpo de um lado, alma do outro. O ser humano é o conjunto simultâneo e recíproco de forças materiais e espirituais. Não podemos separar estas forças. O homem é, ao mesmo tempo, um corpo espiritualizado e um espírito corporeificado.
2 - “a natureza humana é a mesma em toda parte”. Não podemos aceitar este princípio. Não existe uma natureza humana a priori, constituída desde o início. O homem é um devir. Está em constante trânsito, sujeito às vicissitudes da História.[14]
3 - “a finalidade da educação é aperfeiçoar o homem como homem”. Para nós, a finalidade da educação vai além do homem. É uma atividade praxeológica. Deve transformar o mundo, respeitando os ecossistemas. 4 - sendo a racionalidade o mais elevado atributo do homem, este deve usá-la para dirigir sua natureza instintiva de acordo com as finalidades deliberadamente escolhidas”. Este princípio está ultrapassado. A partir do grito de Pascal: “o coração tem razões que a razão desconhece”, vemos desmoronar, aos poucos, o império da razão. Mais, ela deve submeter-se ao tempo histórico e ao contexto geográfico. Como diz, de maneira peremptória, Paulo freire: “sou homem não a partir do universal, mas a partir do local em que vivo”.
5 -”o conhecimento é o mesmo em toda parte”. Não, o conhecimento é histórico. Tem que acompanhar os sinais dos tempos. Por exemplo: nem todo conhecimento da Idade Média, pode ser aceito hoje
6 - “a tarefa da filosofia é introduzir a verdade eterna”. Não existe verdade eterna, a não ser nas religiões. A verdade é relativa. É filha do tempo[15] .
7- A finalidade do ser humano é o conhecimento e para se ter conhecimento é necessário ensino”. Nem sempre o ensino é panacéia para todos os males – é o que aponta a história.e a análise sociológica atesta: as cadeias estão cheias de pessoas ensinadas, sem falar dos facínoras diplomados e engravatados que infestam todas as áreas. A hominização, além de processo epistemológico, é também um processo de maturação biológica, psicológica, ética e política.
8 - O essencialismo camuflado do Realismo. Tendo em vista o processo de hominização, o Realismo tem um vício de origem. Como o Idealismo, é também uma filosofia essencialista, ainda que se preocupe um pouco com a realidade presente. Considera a essência como um “apriori” da existência, pelo menos no plano gnosiológico. É que a “forma” aristotélica não passa de uma essência, que não está no Paraíso das Idéias, mas está nas coisas e constituindo em ato as coisas. Para conhecer uma coisa, temos que abstrair as idéias que estão nas coisas[16].
Sendo, pois, uma filosofia essencialista, tem o mesmo viés do Idealismo: sua inépcia para atingir o homem concreto e conseqüentemente ajudá-lo em seu processo de, pela crítica, levá-lo à completude do ser humano. Com efeito: nenhuma delas[17] concebe o homem concreto e vivo, um homem de carne e osso, pertencendo a um lugar definido e a uma época determinada da história. Uma (o Realismo) reduz o homem às proporções de receptáculo e veículo de valores culturais, a outra (Idealismo) concebe-o como uma experiência contemplativa ou uma emoção mística. Em ambos os casos, a educação incide num domínio limitado da vida humana e não tinha qualquer relação nem com atividade real, social e profissional do homem, nem mesmo com a totalidade da sua vida individual” (SUCHODOLSKI, 1992 : 123).
Como uma rede de fios invisíveis pode atingir e colher, em seu regaço, um ser que não é só espírito, mas é também, matéria sensível e quantificável?
Que o Realismo é uma filosofia essencialista, entende-se facilmente. Vale a pena reforçar e aprofundar o argumento. Ainda que proclame que a realidade verdadeira está neste mundo mesmo, não conseguiu desvencilhar-se do essencialismo platônico, pois também ele coloca que a finalidade do ser humano é contemplar as idéias, ainda que vigentes no coração da realidade. Assim, o que muda é somente a topologia das idéias; ao invés de estarem no mundo das idéias, elas estão aqui mesmo, dentro das coisas.
Diante dessa aporia[18] ou deste impasse, só mesmo apelando-se para uma terceira via para o ser humano em seu processo de desenvolvimento rumo à hominização. Essa terceira via é a filosofia dialética que será apresentada no Apêndice.

Empirismo
Como o Tomismo é a versão realista do século XIII, o Empirismo é a versão do Realismo no século XVII. O Empirismo floresceu na Inglaterra em contraposição ao Idealismo - Racionalismo descarteano- nascido na França. O Empirismo leva aos extremos, sobretudo com Davi Hume, o já citado aforismo de Aristóteles: “Nada chega à inteligência, que não tenha passado primeiro pelos sentidos”.[19]
Fora a questão da substância, a filosofia empirista deixa de lado a metafísica e incesta sua atenção na gnosiologia e na filosofia política.
Vamos destacar somente três filósofos do Empirismo: Thomas Hobbes e John Locke, por sua filosofia política e Davi Hume, por ter criado o Ceticismo moderno, logo, por uma questão gnosiológica.
Thomas Hobbes (1589 – 1679) foi o criador da teoria do primeiro contrato social. Até aí, à exceção da experiência democrática grega e das repúblicas italianas da Renascença, o poder era imposto pelo direito divino ou pela força das armas.
A Europa estava saindo da terrível Guerra dos Trinta Anos. A Inglaterra, por sua vez, tinha pela frente a Revolução Puritana. Ao lado do conflito bélico, vinha o conflito de idéias e interesses.
Dado o jusnaturalismo, vigente e recrudescente a partir de Grocio, a situação da sociedade era deveras preocupante. No estado de natureza, o homem se tornou” lobo para o homem”. O ser humano se mostra tal como é: egoísta, insaciável, calculador. “Deixar que algo seja de alguém é eu me privar de ficar com mais”. O homem é lobo para o homem. Quer tudo: o que é seu e o alheio”.
Hobbes, ardoroso defensor do direito de propriedade, sai a campo para, no plano das idéias, oferecer uma tentativa de solução.
Para trazer paz à sociedade e preservar o direito de propriedade, só há uma solução: o contrato social que consiste em os indivíduos entregarem ao Soberano a sua liberdade e seus direitos; só assim, eles os terão salvaguardados. Esse soberano, depois de constituído, deve ter todos os poderes e se encarnar no Estado que se transforma em um monstro, o Leviatã.[20]
O maior filósofo inglês desta época se chamou John Locke (1632-1704). É o verdadeiro sistematizador do Empirismo. Todo conhecimento vem da experiência. Na esteira de Aristóteles, vai afirmar que o homem quando nasce é como que uma tábua limpa na qual nada está escrito - “uma tábua rasa”. Ultrapassando o pai do Realismo, Locke vai ensinar que não existe diferença entre conhecimento sensível e intelectual. Tudo provém da experiência sensível. Esta compreende dois tempos: sensação e reflexão. Pela sensação, temos as idéias do que nos é externo, que são expressões das qualidades secundárias, como:cores, odores, sons, temperatura, etc. Pela reflexão em que se dá uma combinação das idéias simples que servem de base, temos as idéias complexas, isto é, daquilo que nos é interno, que são expressões das qualidades primárias, ou qualidades psicológicas, como: desejo, amor, dor, etc, bem como as qualidades matemáticas, como: forma, tamanho, altura, etc.
Locke não diferencia conhecimento intelectivo de conhecimento sensível, levando a exremos a célebre sentença de Aristóteles: "Nada chega á inteligência que não tenha passado primeiro pelos sentidos". Para Aristóteles, nem tudo se reduz á experiência sensível.
Distanciando-se c1aramente de Aristóteles, o criador do Liberalismo[21] político, torna-se responsável também, em gnosiologia, pela teoria do Associacionismo.
Com Locke, nasce a desastrosa antinomia, que tanto estrago vai causar, sobretudo, na educação: Associacionismo X Nativismo.
O Nativismo, criado por Descartes, com sua famosa teoria das idéias inatas, ensina que o ser humano nasce com algumas idéias - as primárias - qualidades primárias descritas acima. Raciocinando com estas idéias (qualidades), pelo método dedutivo, chegamos ao conhecimento de tudo, dispensando-se a sensação e a experiência. O Associacionismo, ao contrário, ensina que, associando as idéias da sensação e as idéias da reflexão - já sabemos que todas provêm dos sentidos através da indução, podemos conhecer todas as coisas.
Se Hobbes criou o primeiro contrato social[22], um sustentáculo da monarquia absolutista, Locke vai ser o responsável pela criação do segundo contrato social, arrimo da monarquia parlamentar. Na monarquia parlamentar, quem governa é o Parlamento, eleito, é verdade, só pelo estrato burguês, mas eleito. A liberdade deixa de ser uma rainha sem trono, como no passado. Pelo menos no espaço político, ela começa a mostrar um semblante promissor e adquirir acento.
Como já foi insinuado, Dave Hume (1711-1776) leva às ultimas conseqüências as premissas sensistas do Realismo, tornando-se o arauto do Ceticismo moderno. Os sentidos são os únicos instrumentos do conhecimento. Ora, os sentidos falham. Logo o conhecimento é altamente duvidoso, ou impossível. Hume tira as conseqüências mais extremadas dos princípios associacionistas colocados por Locke. É um verdadeiro sensismo. Fora dos sentidos, nada. Hume é o legítimo criador do Ceticismo moderno[23].
Levando às últimas consequências as teses do Associacionismo, Hume nega consequentemente o princípio da causalidade. Esta não existe. O que existe mesmo é o hábito da associação. Nós nos acostumamos a associar um fenômeno com outro fenômeno.
Na mesma linha de pensamento, Hume vai negar a existência do sujeito. Para ele, não há sujeitos, o que há é uma incidência de acontecimentos. O ser humano é um feixe de acontecimentos passageiros. O que existe são fenômenos. Daí ser ele, também, o responsável pelo Fenomenismo. O que existe são fenômenos, aparências. Atrás das aparências, nada. A realidade em si não existe.
Como já vimos, Kant era admirador de Davi Hume que, segundo ele, o acordou do sono dogmático.
Percebe-se que a metafísica não tem lugar no Empirismo. Sendo assim, a filosofia está entregue aos destinos da Ciência. Nesta mira vai convergir todo o esforço do Positivismo, capitaneado por Augusto Conte. Aqui, o Realismo passa a ser pensado como naturalista e cientificista.

Crítica ao Empirismo
Abdicando-se da metafísica, que é uma espécie de maestro da orquestra da filosofia, o Empirismo vai além do Realismo clássico e torna-se caudatário da ciência.
Matriz do Liberalismo, o Empirismo tornou-se a filosofia da burguesia em ascensão, não estando nem aí para a miséria que varria a Inglaterra, que provocou, no século anterior, a composição do livro a Utopia, por Thomas Morus, e que ainda persistia no século XVIII. Miséria que só veio a ser amenizada, anos depois, graças aos rescaldos das Grandes Navegações de cujos frutos os ingleses se apropriaram indevidamente. Por esse procedimento devastador, os ilhotas da Bretanha maior fazem da Inglaterra, na expressão de Castro Alves, a sanguessuga da humanidade e, na América Latina, os mais desumanos abridores de nossas veias, como escreve o uruguaio Roberto Gomes, em As veias abertas da América Latina.
Que a filosofia empirista ressuma essencialismo não é difícil entender. De fato, Jonh Locke já havia levantado as coordenadas a respeito das “qualidades primárias”, (cor, odor, som), que seriam produtos da associação.Aassociamos, por exemplo, a cor à visão, etc. Isto levou seu discípulo Davi Hume a substituir o princípio de causalidade pelo princípio da crença: nós nos habituamos a relacionar os acontecimentos; se aconteceu no passado, cremos que acontecerá novamente. A crença não se baseia em constatações empíricas, mas em idéias preconcebidas, em apriorismos.



























[1]A filosofia de Aristóteles chama-se também Analítica, pois é uma filosofia demonstrativa: ela gira em tomo da análise das proposições de que se deve tirar conclusão coerente.
[2]Aristóteles, ainda herdeiro de Platão, acreditando que as idéias estão no interior das coisas, tem este conceito de abstração.
[3] Por muitos séculos se discutiu qual o sentido da palavra adequação, usada por Aristóteles, discussão que deu origem às quatro espécies de Realismos.
[4] Lembrar que a Grécia era dividida em Cidades-Estado. Daí esse modo de expressão
[5] A filosofia sempre ensinou que o todo não é a soma das partes, logo a soma das partes não faz o todo.
[6] Notar que é preciso levar-se em consideração o contexto histórico de Aristóteles. Ele viveu nos estertores da democracia grega, em que o povo se reunia na praça para participar das decisões políticas; o que é impraticável hoje.
[7] A diferença entre a posição socrático-platônica e a aristotélica, nesta, questão é que para Sócrates e Platão, tratava-se do conhecimento do mundo e para Aristóteles, o conhecimento é do próprio homem
[8]Dada a diversidade e, mesmo, a ambigüidade das divisões do Realismo, ouso apresentar a minha versão.
[9].Notar que o termo “Realismo” só pôde ser usado a partir de Aristóteles. Antes deste, o termo próprio para quem não admitia a existência do espírito é materialismo.
[10]Marx, no século XIX, irá criar o Materialismo Histórico e o Materialismo Dialético; dado, porém, que seu conceito de matéria é diferente do conceito de matéria de Aristóteles, o realismo marxista é diferente dos Realismos descritos, incluindo o dos atomistas, como Leucipo e Demócrito (séc. V a.C.)
[11]Afirmando a existência da alma e a existência de Deus (o motor que move e não é movido), o realismo criado por Aristóteles só pode ser espiritualista e teístico.
[12]Tomás de Aquino (1225 – 1274) foi o maior filósofo e o maior teólogo da Idade Média.
[13]A superioridade da alma sobre o corpo é um resquício de platonismo, cooptado pelos filósofos medievais.
[14]Para maiores informações, consultar nosso livro, Dialética - a Terceira Via da Educação: de Heráclito a Paulo Freire
[15]Sobre o assunto da verdade, eu já me encontro numa perspectiva pós-moderna, o da relatividade da verdade.
[16] Daí a célebre fórmula aristotélica: Nada chega à inteligência, que não tenha passado primeiro pelos sentido. Sendo os sentidos as antenas que captam a realidade e a razão o instrumento que abstraem desta as essências ou idéias e as elevam à mente.
[17] Suchodolski está se referindo tanto ao como ao Idealismo e ao Realismo.
[18] O termo “aporia” pode ser traduzido por beco sem saída.
[19]O Positivismo irá tirar as conseqüências desta posição humana: fora dos sentidos, nada existe.
[20] O Leviatã foi inspirado naquela baleia que engoliu o profeta Jonas, como narra a Bíblia.
[21]Locke (+ 1704) é o principal responsável pela criação do Liberalismo Político: qualquer ser humano tem o direito de escolher seus governantes.
[22] O contrato social idealizado por Locke tem a finalidade principal de defender o direito de propriedade e, por conseqüência, defender a Monarquia Parlamentar, sustentada pela burguesia
[23] O Ceticismo antigo foi a posição de um grupo de filósofos do século V e IV a. C. Um deles Chamado Górgias, dizia: a realidade não existe, se existe, não pode ser conhecida. Céticos, portanto, são aqueles que não aceitam a possibilidade do conhecimento.