terça-feira, 3 de março de 2009

FILOSOFIA E EDUCAÇÃO (CAP. 06)

CAPÍTULO 06

O filósofo é crítico; embora não seja desesperado da verdade, recusa todas as certezas (Rouanet)

FILOSOFIA E EDUCAÇÃO

Ao final do capítulo III, afirmamos que não se trata propriamente de aprender filosofia, mas de se educar filosoficamente. Esta afirmativa já aponta a íntima relação entre Filosofia e Educação. São irmãs gêmeas. Nasceram ao mesmo tempo. Sempre tiveram o mesmo objetivo: proteger e desenvolver a plenitude da vida. Com efeito, Filosofia e Educação sempre andaram juntas desde os primórdios da Filosofia e da Escola: “uma, como interpretação teórica das aspirações, desejos e anseios de um grupo humano; a outra, como instrumento de veiculação dessa interpretação”. (LUCKESI, 1992 : 32).
(...) “Assim sendo, não há como se processar uma ação pedagógica sem uma correspondente reflexão filosófica. Se a reflexão filosófica não for realizada conscientemente, ela será sob a forma de ‘senso comum’, assimilada ao longo da convivência dentro de um grupo. Se a ação pedagógica não se processar a partir de conceitos e valores explícitos e conscientes, ela se processará, queiramos ou não, baseada em conceitos e valores que a sociedade propõe a partir de sua postura cultural.
Quando não se reflete sobre a educação, ela se processa dentro de uma cultura cristalizada e perenizada. Isto significa admitir que nada mais há para ser descoberto em termos de interpretação do mundo. É propriamente a reprodução dos meios de produção.[1] (...) Nas relações entre Filosofia e Educação, só existem duas opções: ou se pensa e se reflete sobre o que se faz, e assim se realiza uma ação educativa consciente; ou não se reflete criticamente, e se executa uma ação pedagógica a partir de uma concepção mais ou menos obscura e opaca, existente na cultura vivida no dia a dia, e assim se realiza uma ação educativa com baixo nível de consciência”. (idem, p. 32)
Essa ligação entre Filosofia e Educação, é uma constante a partir de Sócrates. Este educador - considerado o maior mestre do Ocidente - mantinha tanta intimidade com a Filosofia, que criou um de seus mais importantes ramos - a antropologia. Seu método didático da “maiêutica” decorre de sua convicção filosófica de que as idéias estão adormecidas no interior das pessoas, devendo ser despertadas pela ação pedagógica.
Em Platão, não saberíamos distinguir bem o filósofo, do educador. Ele, ao lado de Isócrates, é apontado como criador do tipo de escola que temos até hoje e que, em sua prática pedagógica, Platão chamou de “Academia”. Este filósofo escreveu a República, que é considerado um dos mais importantes livros de pedagogia de que se tem notícia.
Aristóteles, em sua obra Arte Retórica e Poética, trata profundamente da educação. O mesmo se diz dos pensadores romanos: Cícero, Sêneca, Quintiliano, Plutarco, para citar os principais.
Entre os filósofos medievais, lembramos Santo Agostinho com seu De Magistro e Santo Tomás de Aquino que, no século XIII, escreveu, com o mesmo título, uma importante obra pedagógica.
Todos os filósofos foram educadores. É o que podemos constatar, pelo menos, até o século XIX. Além dos nomes lembrados, poderíamos continuar a lista, sem excluir: Locke, Kant, Rousseau, Hegel, Marx, Gramsci, Vieira Pinto, Anísio Teixeira, Paulo Freire e Saviani.
Essa intimidade só veio a se enfraquecer com a criação das chamadas “ciências sociais e humanas”, a partir do fim do século XVIII.. De fato, estas são indiscutivelmente indispensáveis à educação e só se tomam intrusas quando se arrogam o direito de substituir a filosofia. É assim que comçam a aparecer os “sociologismos”, os “psicologismos”, os “biologismos”, os “economicismos”, etc.
Filosofia e Educação estão ligadas. Fato que leva Walter Kohan a afirmar a propósito do Projeto de filosofia para criança de Mathews Lipman: “Concordamos com Lipman em que tanto a filosofia é uma dimensão insubstituível da educação quanto a educação é uma dimensão in-substituível da filosofia. Sem sua projeção educacional, a filosofia se torna vazia; sem sua dimensão filosófica, a educação se torna cega”. (KOHAN, Opus cit. p. 120).
Em vista disto, Luckesi também conclui: “Não há como fugir dessa ‘fatalidade’ da nossa existência. Assim sendo, parece-nos mais válido e mais rico, para nós e para a vida humana, fazer esta junção de maneira consciente, como bem cabe a qualquer ser humano. É a liberdade no seio da necessidade”. (LUCKESI, Opus cit, p. 33).
O fenômeno educacional, do ponto de vista epistemológico, é muito complexo. Em sintonia com os textos transcritos, podemos dizer que não é possível tratá-lo do mesmo modo como é tratado nas ciências. Estas não possuem um acervo categorial para a construção/apreensão de seu objeto. A aproximação do fenômeno da educação exige uma abordagem no mínimo interdisciplinar (hoje caminhamos para a transcultura e a transdisciplinaridade). Esta interdisciplinaridade (transdisciplinatidade) é tecida pela reflexão filosófica. A filosofia não substitui os conteúdos significantes elaborados pela ciência. Ela, como que os articula, instaurando uma comunidade construtiva de sentido, gerando uma atitude de abertura à interdisciplinaridade (transdisciplinaridade).
Apesar da clareza e contundência dos argumentos aqui exarados para mostrar o casamento natural entre Filosofia e Educação, vamos colocar três linhas de raciocínio, além da história que já foi largamente lembrada.

Questão temática e teleológica
O objeto tanto da Filosofia como da Educação é o ser humano. Ao tratar de outros temas, sua preocupação é o homem. Na perspectiva do homem, ambos tratam da realidade no aspecto da totalidade, radicalidade e criticidade.
Para ambas, estão sempre presentes as indagações: o educando, quem é, o que deve ser, qual seu papel no mundo; a sociedade, o que é ? O que pretende? Qual deve ser a finalidade da ação pedagógica? Estas são indagações que emergem da atividade educacional dos povos para a reflexão filosófica, no sentido de que estabeleça pressupostos para aquela.
Um desses pressupostos - e o mais importante - é saber que tipo, que imagem de homem eu pretendo conseguir em minha prática educativa. Sabemos que as ciências particulares não são capazes de fornecer uma íntegra e autêntica imagem do homem. Senão vejamos: a Física só está preocupada com a força que, no homem, provoca o movimento; a Química está preocupada com a constituição dos corpos; a Biologia só se interessa pela estrutura e vitalidade das células; a História está preocupada com as ações do homem no tempo; a Geografia com as ações do homem no espaço; a Sociologia, com as ações entre as pessoas e grupos; a Psicologia, com a estrutura e comportamentos psíquicos das pessoas; a Economia, com a sobrevivência material dos povos. E assim por diante.
Inventariadas todas as contribuições das ciências, o que temos? Um aglomerado de pe-daços da imagem do homem, não o homem em sua dimensão integral ou seja, um homem pela metade, um mostrengo de homem.
As ciências humanas têm status próprio na Pedagogia. Status soberano e não subalterno. Acontece, porém, que só a filosofia no seu impulso de visão total, onímoda, “holística” pode fornecer uma imagem integral do ser humano. Esta idéia da importância da filosofia para a Educação é tão cristalina que Anísio Teixeira[2] não teve pejo de declarar: “Creio que em educação sempre haverá mais necessidade de filosofia do que de ciência”. (PAGANI, p. 19). O mesmo Anísio, em 1950, diz mais ou menos o seguinte a propósito da formação de professores:
“Contudo, antes de formar bacharéis, seria necessário formar ‘pequeninos Sócrates’, isto é, crianças e jovens que não apenas fossem talhados para o trabalho profissional, como também tivessem aguçada sua inteligência para que compreendessem as ‘incertezas do mundo complexo e mutável’, desenvolvessem a tolerância e contribuíssem para o enriquecimento e o ‘progresso da existência humana’ (PAGANI, 22).[3]
Anísio Teixeira foi discípulo de Dewey, um dos criadores da filosofia pragmatista, que tentou introduzir na educação brasileira. O texto citado dá a entender que Anísio absorveu bem a filosofia pedagógica do grande educador norte-americano.
Walter Kohan, em sua vasta obra de defesa da filosofia para crianças, recorre com freqüência ao pensamento de Dewey. Vejamos algumas passagens:
“ Ele propôs considerar a escola como um espaço de construção social do pensar e de formação e exercício da capacidade de julgar das crianças e não como um lugar de transmissão de conhecimento... Neste sentido, o melhor que uma escola pode fazer por seus alunos é desenvolver sua habilidade de pensar”. E conclui Kohan: “Para Dewey, existe uma disciplina que cultiva o pensar, no que o diferencia do conhecer, a filosofia[4]
Sobre a relação entre filosofia e educação, muita coisa Matheus Lipman tem a dizer, além do que já foi colocado a propósito da interdisciplinaridade. É o que veremos:
“Há um século e meio atrás, Eduardo Hanslick formulou sua famosa tese de que a música é única entre as artes, porque, na música, forma e conteúdo são uma só coisa. Seja como for, pode-se efetivamente argumentar que a filosofia é a disciplina cuja forma e pedagogia são uma só coisa. Até onde isto for assim...a filosofia fornece um modelo formidável para o processo educacional como um todo”
Até a pouco tempo discutia-se o acerto do método ontogenético em que se colocava a antinomia: forma ou conteúdo? Sujeito ou objeto?[5]
A finalidade da escola é formar investigadores[6], entretanto...
“O estudante que aprende apenas os resultados da investigação não se torna um investigador, mas um estudante instruído. Esta alusão aponta para um dos propósitos educacionais da filosofia: todo estudante deve tornar-se um investigador. Para a realização desta meta não há melhor preparo que o que é dado pela filosofia... A educação nas outras disciplinas não envolve tanto conhecimento quanto aprender, quanto aprende a pensar uma disciplina – pensar historicamente, fisicamente, antropologicamante, matematicamente, etc. A filosofia implica aprender a pensar sobre uma disciplina e, ao mesmo tempo, aprender a pensar autocorretivamente sobre nosso pensar”. (LIPMAN, 1990 : 59)
Para maiores esclarecimentos sobre este tema, recomendamos o livro de Mathew Lipman, A Filosofia vai à Escola, sobretudo o capítulo 03
Um princípio em que muito vamos insistir é que: tal a antropologia, tal a pedagogia - tal o princípio antropológico, tal o princípio pedagógico. Conforme a concepção que eu tenho do homem, assim será a instrumentalidade que devo usar para educá-lo. Repetindo, tal o tamanho do homem, tal será o tamanho da educação. Exemplo: se o homem é só um animal, vou educá-lo como animal. Se é um anjo, vou educá-lo como anjo. Sem a contribuição da Filosofia, a educação será um aparato inútil: é como uma rede de náilon para pescar baleia ou uma rede de tarugo para capturar borboletas. Alguém me promete como presente de Natal um filhote de pequinês; construo um canil apropriado; eis que no Natal, recebo um buldogue adulto; onde vou abrigá-lo ?
Outro pressuposto para a educação é a questão dos conceitos, das categorias. Não é a ciência que cria os conceitos e as categorias. Esta criação é obra da Filosofia. Como se pode falar de educação sem o domínio de conceitos, tais como: conhecimento, sujeito, objeto, essência, existência, natureza, substância, acidente, finalidade, etc.
Outro pressuposto para a educação - dominar as habilidades de pensamento, de investigação. A educação exige tais habilidades e só a filosofia poderá fornecê-las.
Outro pressuposto - a interdisciplinariedade. É necessário todo esforço para eliminar o “fantasma diplomado”. Nada de preparar o aluno para se transformar, no fim do curso, numa espécie de cabide de conhecimento. Numa haste do cabide está uma disciplina, noutra haste, está outra disciplina, naquela outra mais uma disciplina. Temos ao final, não um ser humano integralizado, em que as disciplinas estão assimiladas e encarnadas, mas, sim, um “espantalho” fantasiado de conhecimentos. Conhecimentos estanques que se perdem logo depois da azáfama da formatura.
Pois bem, só a Filosofia pode contribuir para a integração destas disciplinas na formação do homem integral, onímodo, “holístico”, sábio, douto, culto e consequentemente preparado para exercer uma profissão.
Ratificando estas posições, oferecemos a transcrição de outra importante obra do professor Lipman, intitulada O Pensar na Educação, p. 381:
“A filosofia estimula o pensamento nas disciplinas, pois assume a responsabilidade de ensinar os aspectos genéricos do pensamento, que ocorrem em qualquer disciplina, e porque é um modelo daquilo que significa para uma disciplina refletir sobre e (sic) ser crítica da sua própria metodologia. A filosofia sempre considerou axiomático que o curso não analisado não merece ser dado, apesar de, muitas vezes, não ser capaz de funcionar de acordo com os seus axiomas.
A filosofia estimula o pensar sobre as disciplinas, pois um dos seus principais métodos de operação é a “filosofia” do curso: a filosofia da matemática, a filosofia das ciências sociais, a filosofia da linguagem e assim por diante. Na realidade, a “filosofia do curso” freqüentemente revela aspectos inerentes à metodologia de uma disciplina, sobre a qual os profissionais daquela disciplina não têm plena consciência.
A filosofia estimula o pensamento entre as disciplinas, a fim de impedir o provincianismo, que, muitas vezes, acompanha a especialização profissional. A mente superespecializada é o que há de pior na vida acadêmica, e precisamos da persistente advertência interdisciplinar, que a filosofia representa, para fazer com que percebamos que aquilo que ocorre nas linhas divisórias entre as disciplinas é, no mínimo, tão importante ao que acontece dentro delas.
Finalmente, necessitamos da inflexão da filosofia em relação à questão que, quando falamos de investigação, não nos referimos somente à investigação científica, e, quando falamos de metodologia, não nos referimos somente à metodologia científica. Existem também as investigações artísticas, humanísticas, filosóficas[7], profissionais - cada qual com sua própria dimensão metodológica. Os alunos precisam se familiarizar com toda esta dimensão ou ordem das coisas e não apenas com alguns dos seus elementos”.

Questão metodológica
Como já se lembrou, a filosofia é a expressão dos anseios e dos desejos, das aspirações de uma época, e a educação é meio para veicular estas aspirações. Quer dizer que a educação é o método da filosofia.
De outra parte, somente a filosofia é capaz de resolver os aspectos fornecidos pelas ciências humanas e constituir uma totalidade que não se resume na soma das partes. A filosofia leva à articulação dialética dessas partes, entre si e com o todo, sem perder sua especificidade, ao totalizar, ao unir, ao relacionar.
O fenômeno educacional é muito complexo. Não é possível tratá-lo do mesmo modo que é tratado nas ciências. Como se afirmou anteriormente, estas não possuem um acervo catego-rial para a construção/apreensão de seu objeto.
A aproximação do fenômeno da educação exige uma abordagem multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, como também já foi lembrado. Ora, tudo isto é tecido pela reflexão filosófica. A Filosofia não substitui os conteúdos significadores, elaborados pelas ciências. Ela como que os articula, instaurando uma comunidade construtiva de sentido, gerando uma abertura à intersubjetividade. A educação é um fenômeno não só objetivo, não só subjetivo, mas intersubjetivo.
Encerrando este capítulo, poderíamos dizer que, se a educação é o método genérico da filosofia, esta, por sua vez, é o método genérico das ciências, isto por causa de sua largueza totalizante, podendo, assim, formular hipóteses de mais longo alcance, levando a uma visão mais abrangente e integrada do ser humano - Tudo isto é uma questão de método. Encerrando esta primeira parte de nosso ensaio, damos por finda nossa pretensão de apresentar uma meta-filosofia ou uma proto-filosofia. Na segunda parte, pretendemos entrar na filosofia propriamente dita, estudando sete escolas filosóficas, incluindo o Apêndice sobre Dialética.

[2] Anísio se revela aqui um fiel seguidor de Dewey, com quem estudou Pragmatismo nos EEUU.
[3] Estas afirmações de Anísio Teixeira foram extraídas do artigo do Prof. Pedro Angelo Pagani, respectivamente, p. 20 e 22 da Revista Educação: Associação Brasileira de Educação, Ano 32, n. 101.
4 Segundo Dewey, o pensar e o julgar são diferentes de conhecer. O conhecer é apreender o que é dado, não favorecendo a criatividade, ao passo que o pensar e o julgar, sendo hipotéticos, projetam-se sobre o futuro e, assim, favorece a criatividade. Nesta linha de raciocino, sendo a filosofia a arte de pensar, ela é tão prospectiva, quanto o pensar.
[5] A metodologia da pedagogia tradicional girava em torno do objeto, ou seja em torno do conteúdo, em contraposição, sobreveio a metodologia ontogenético que gira em torno do sujeito do conhecicimento. Naquele momento, a pergunta freqüente era: o que é mais importante para ensinar latim a João, saber latim ou conhecer João. Hoje, parece estarmos chegando a uma síntese: saber latim e conhecer João. Lipman insiste: “... o objetivo da educação tem de ser transferido da aquisição de conhecimento para o pensamento, e este pensamento tem que ser crítico ou lógico ou ambos”.
[6] Inquirir, investigar é indispensável para a hominização do ser humano e isto é a finalidade suprema da escola.

Nenhum comentário: