sábado, 21 de fevereiro de 2009

CAPÍTGULO 05

CAPÍTULO 05

A Filosofia é a consciência da ciência (Montaigne)

FILOSOFIA E CIÊNCIA - FILOSOFIA, CRÍTICA E IDEOLOGIA

Dada a importância da ciência, vamos tratar, neste espaço do livro, do relacionamento entre filosofia e ciência em suas características convergentes e divergentes.
No tempo dos gregos, bem como na Idade Média, “ciência” e filosofia viviam harmonicamente. A filosofia era como o tronco da árvore cujos ramos eram as ciências. Esta intimidade era tão grande que muitos analistas chegam a negar a existência da ciência naqueles tempos. Realmente, não havia na ciência grega um processo de descoberta. Os princípios eram intuídos. Faltava o controle quantitativo e matemático das variáveis. O que havia era um processo de demonstração pela lógica silogística.
Entretanto, no Renascimento - século XVI/XVII - iniciou-se a separação entre filosofia e ciência, com a revolução científica, desencadeada por Copérnico, Francis Bacon, Galileu e Descartes. Esta revolução científica consistiu em três acontecimentos de suma importância:
1 - A criação da indução científica;[1]
Até aí o conhecimento se fazia por intuição e dedução;[2]
2 - A introdução do uso dos instrumentos tecnológicos[3]
3 - A criação da dúvida metódica.
Até então o argumento usado para garantir a verdade do conhecimento era a autoridade. Não se podia contradizer a autoridade. Um dos maiores méritos de Descartes é, enfrentando o autoritarismo e o dogmatismo aristotélico-tomista, ter-nos ensinado a duvidar.
Estes três fatores são tão importantes que a maioria dos pensadores afirma que a ciência propriamente dita foi criada aí - no Renascimento - pois sem a indução e quantificação dos dados induzidos, não há ciência: e isto só acontece quando se aplica a matemática ao conhecimento - o que não acontecia antes da Renascença. O mesmo se pode dizer do uso dos instrumentos de alta precisão. Por outro lado, “a dúvida metódica”, impulsionando a pesquisa experimental, impedindo que o conhecimento se estratificasse, foi de grande valia para o novo conceito de ciência.
A separação entre filosofia e ciência se tornou quase uma guerra, nos séculos XVIII e XIX; neste último, chegou-se ao ponto extremo, quando Augusto Conte decretou a morte da filosofia, substituindo-a pelo estado da positividade, da cientificidade. O que resultou naquilo que, hoje, chamamos de cientificismo[4]
O que vemos, então, é a” digladiação” entre cientistas e filósofos, com grande prejuízo para o conhecimento humano.
É pena, pois são dois conhecimentos determinados, com estatuto específico; ainda que independentes em seus níveis, são eles igualmente necessários para a humanidade. Poderíamos comparar esses conhecimentos aos dois trilhos por onde corre uma locomotiva: se estes trilhos se conservam lado a lado, sem se afastarem, mas também sem se afunilarem, só temos a ganhar com isto.
Já se disse que a filosofia é a consciência da ciência. Aqui, a bem da verdade, devemos reconhecer que a filosofia precisa da ciência. Esta se torna, cada vez mais, a rica fornecedora de matéria prima, para a reflexão filosófica. A ciência, com seu rigorismo metodológico, tem ajudado a filosofia a deixar de ser uma tribuna livre em que cada um diz o que quer, a ser menos subjetivista[5], a se afastar do “achismo” tão nefasto a qualquer conhecimento.
Ambos os conhecimentos são necessários. A filosofia compreende, a ciência explica. Explicar, como já vimos nos capítulos anteriores, é determinar as condições de um fenômeno, é prender a realidade nas malhas de conceitos lógicos, não se preocupando com a realidade total do ser humano. Ao contrário, o termo compreensão significa muito mais. Possui uma conotação afetiva e sinaliza o ato de se colocar no lugar do outro, de compartilhar com ele, em seu fazer.
A compreensão só pode acontecer na filosofia, Philos = amigo; sophia = sapientia = sentir sabor. É sentir o sabor das coisas, de sua totalidade, de sua visão onímoda (holística).
A partir do século XVII, começaram a aparecer as ciências ditas “particulares”, em contraposição à “ ciência geral” que é a filosofia. As ciências emergentes se dizem particulares, porque seu campo específico é limitado. Por exemplo: a Física só trata da energia que provoca o movimento; a Química só trata da composição dos corpos; a Biologia só cuida da vida das células nas suas ramificações imediatas; a História só cuida das ações do homem no tempo; a Geografia, das ações do homem no espaço; a Sociologia, das relações entre as pessoas e grupos; a Psicologia, das estruturas mentais e do comportamento observável. Enquanto isto, a Filosofia continua tratando destas mesmas realidades, mas sob o aspecto da totalidade, radicalidade e criticidade.
A ciência, diante da realidade experimentada, formula juízos de realidade, ao passo que a filosofia, diante da realidade vivida, formula juízos de valor. Por isso, Jaspers teve condição de afirmar: Uma ciência não pode ensinar a alguém o que deve fazer, mas apenas o que pode fazer, para atingir seu fim por meios estáveis.(MILHOLLAN & FORISHA, 1972: 65-66)

A ciência é objetiva, a filosofia é subjetiva
Objeto é o que existe fora da mente. A ciência se afasta do objeto para melhor formular as leis que o regem. A filosofia é subjetiva; aproxima-se do objeto para impregná-lo de seu afeto, abraçá-lo ternamente, sentindo seu sabor” sapientia “. Platão disse que a filosofia começa com a admiração. A ciência, por ser objetiva, presume-se neutra, enquanto a filosofia procura administrar as ideologias, sabendo-se vulnerável.
A ciência é teórico-prática e a filosofia é teórico-teórica, ainda que, na concepção atual, conforme visto no capítulo 04, tenha uma propensão para a prática, pelo menos a longo prazo.
A ciência é teórica, pois se faz com conceitos, já que, sem estes, não é possível nenhuma generalização. E as leis científicas são generalizações de coisas particulares. Entretanto, a ciência é, eminentemente, prática, pois tem como finalidade imediata, subsidiando a técnologia, procurar conforto para o ser humano. A filosofia, por sua vez, ainda que preocupada, a longo prazo, com a vida plena do homem, é um conhecimento teórico, pois sua matéria prima são as idéias.
Identificados estes sinais diferenciadores entre filosofia e ciência, é hora de encerrar este item com uma última reflexão. A ciência navega de braçada no mar imenso da curiosidade humana; seu progresso é geométrico. A filosofia, por sua vez, desenxabida, recusada, contestada, perseguida, execrada, pulverizada, qual fênix ressurge das cinzas. Seu método mântrico é o mesmo do mito de Sísifo.

Filosofia e Crítica
Já abordamos os temas da criticidade, no cap 02, item 03 e no cap. 04, ao tratarmos das características da filosofia.(Ver Chauí, p. 18 e 23) Dada sua importância, sua involvência substancial com a filosofia e suas conseqüências para a vida, achamos por bem tratar do assunto em capítulo especial. E como a mais importante função da crítica é descobrir o conteúdo silenciado - a ideologia - resolvemos unir neste capítulo os dois temas.
A Crítica
A palavra crítica é nova. Foi criada por Kant que se inspirou no verbo grego” crinein” que significa separar. A palavra é nova, mas a realidade coberta por ela, é tão antiga quanto a própria humanidade. A idéia primordial da palavra crítica, é a idéia de separação. O ato de julgar é o ato supremo de distinção do ser humano. E julgar é, portanto, separar; por isso, segundo Kant, o processo crítico começa com a separação.
A crítica contempla as duas faces marcantes da filosofia: uma negativa e outra positiva. A primeira é um não às crenças do dia-adia, aos “pré-conceitos”, aos “pré-juízos”, ao fundamentalismo, ao sectarismo, ao o mecanicismo antropológico, ao objetivismo/cientificismo, à facticidade, à brutalidade dos fatos, ao determinism, ao fideismo, à moral de resultado, ao “falou, tá falado”, ao estabelecido pelo poder dominante ou pela sociedade. A segunda é uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, os comportamentos, os valores, nós mesmos; uma interrogação sobre o porquê, o como disso tudo e de nós mesmos – para descobrir, esclarecer e propor mudanças A transcrição abaixo “O rei está nu” muito nos ajudará a ter uma idéia clara sobre a caracterização da crítica como processo de descoberta.
Em geral, julgamos que a palavra “crítica” significa ser do contra, dizer que tudo vai mal, que tudo está errado, que tudo é feio ou desagradável. Crítica é mau humor, coisa de gente chata que acha que sabe mais do que os outros. Mas não é isto que essa palavra quer dizer.
A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais: 1) capaci- dade para julgar, discernir e decidir corretamente;[6] 2) exame racional de todas as coisas sem pré-conceito e sem pré-julgamento[7]; 3) atividade de examinar e avaliar detalhadamente uma idéia, um valor, um costume, um comportamento, uma obra artística ou científica...”[8] (Chauí, 2006 : 18).
Para todos os efeitos, no entanto, o papel da crítica não é contrapor verdade[9] e erro, bem e mal, e muito menos diminuir, deprimir ou amofinar quem quer que seja. Trata-se de descobrir o conteúdo silenciado. O que não significa ainda emitir juízos de valor. Este conteúdo silenciado pode ser de um discurso; de um projeto; de uma promessa; de uma lei; de uma obra de arte: estátua, pintura, música ou qualquer coisa promovida pela ação humana.
Criticar é seguir os critérios que estão inscritos na própria visão de mundo. Ter critério é possuir uma norma para distinguir o que é adequado do não adequado, do que é aceitável do que não é, do qu se deve fazer ou não fazer.
A crítica segue, mais ou menos, o seguinte roteiro. Diante de um todo sincrético (confuso) cabe-nos codificá-lo e decodificá-lo (organizar para analisar). O segundo passo é o da análise: dividir em partes. Terceiro passo: vamos dar-lhe uma visão de conjunto; vamos sintetizá-lo. Notar que a síntese não é simplesmente ajuntar as partes. “A soma das partes não faz o todo”. A síntese é sempre um conhecimento compreensivo que somente a filosofia pode oferecer, dada sua visão de totalidade tanto da parte do objeto como, sobretudo, da parte do sujeito, que se investe todo nesta ação. A síntese é uma totalização objetiva e subjetiva.
Ao perfazer essa travessia, separando e refazendo, a crítica, porém, vai encontrar uma missão muito árdua: ler nas entrelinhas, fazer um trabalho de escavação para encontrar o conteúdo silenciado; silenciado de propósito, ou inadivertidamente. Ao realizar este trabalho, a crítica pode encontrar “uma obra de pensamento”, na expressão de Marilena Chauí, isto é: algo bom que vai enriquecer a personalidade cultural do crítico. É o tesouro do saber. Mas, geralmente, o que a crítica vai encontrar é um conteúdo silenciado, de propósito, para enganar, visto não apresentar a gênese do processo. A crítica, então, encontrou uma ideologia no sentido marxista, como veremos nos próximos passos..
Por outra, criticar é conhecer a realidade, melhor dizendo, é mostrar a nudez da realidade.
A propósito, vamos contar a seguinte Estória, extraída de Claudino Pillet, p. 13-16:
O rei está nu”
Há muitos anos, vivia um rei que gostava muitíssimo de roupas novas e bonitas. Tinha um traje para cada hora do dia. A grande cidade onde ele residia era alegre e movimentada; todos os dias ali aportavam muitos viajantes. Um belo dia, chegaram dois trapaceiros que, fazendo-se passar por tecelões, anunciaram que sabiam tecer panos maravilhosos. Não só as cores e os padrões de seus tecidos eram algo fora do comum como também as roupas, com eles feitas, tinham um extraordinário predicado: o de se tomarem invisíveis para as pessoas que fossem simplesmente néscias.
Que roupas formidáveis! - disse de si para si o rei. - Fazendo-as vestir, eu poderia saber que homens, no meu reino, não servem para o cargo que ocupam. Poderei, também, distinguir os sábios dos néscios. Quero que esses panos sejam imediatamente tecidos! “E deu desde logo muito dinheiro aos dois trapaceiros, para que começassem, sem perda de tempo, a trabalhar.
Os dois montaram dois teares, fingiram trabalhar, mas não tinham fio nenhum no aparelho. Pediram as sedas mais finas e o ouro mais puro, que meteram no próprio saco e, pela noite adentro, trabalharam nos teares vazios.
‘Bem gostaria eu de saber até que ponto adiantaram o tecido’, pensou o rei. Teve, porém, uma sensação esquisita ao pensar que os néscios e os que não estavam à altura dos seus cargos não podiam ver o pano. Imaginava, naturalmente, que por si próprio, nada deveria temer, mas, por via das dúvidas, preferiu mandar primeiro outra pessoa, para ver como iam as coisas. Todos os habitantes da cidade já sabiam da maravilhosa virtude que aquele tecido possuía e ansiavam por ver quanto o vizinho era tolo ou incompetente.
Vou mandar meu velho e honrado ministro ver os tecelões - pensou o rei. - É quem melhor poderá ver como está o tecido, pois é homem inteligente e ninguém serve melhor que ele para o seu cargo. O velho e honesto ministro entrou na sala onde os dois trapaceiros trabalhavam nos teares vazios.
Meu Deus do céu! - murmurou o velho ministro, arregalando os olhos. - Eu nada vejo! - Mas não o disse a ninguém.
Os trapaceiros pediram mais dinheiro, mais seda e mais ouro, a fim de prosseguirem com o trabalho. Meteram tudo nos bolsos, e para os teares vazios não foi um só fio. Nele os espertalhões continuaram a fingir que teciam. O rei não tardou a enviar outro alto e honrado funcionário, a ver como ia o serviço, se faltava muito para a conclusão do tecido. Aconteceu-lhe o mesmo que ao ministro: o homem olhou e tomou a olhar, mas como só havia teares vazios, ele nada mais pôde ver.
Mas, pôs-se a elogiar o tecido que não via, manifestando sua satisfação ante tão belas cores e tão gracioso padrão.
O rei quis, então, ver com os próprios olhos a fazenda, enquanto ela ainda estava no tear. Com um grande grupo de homens escolhidos, do qual faziam parte os dois velhos e honrados funcionários que antes lá haviam estado, foi ele à sala onde os dois trapaceiros teciam, incansavelmente, sem um só fio de linha.
Então, não é magnífico! – exclamaram, ao mesmo tempo, os dois altos funcionários. - Queira Vossa Majestade ver que padrões. Que lindas cores!
E apontavam o tear vazio, pois acreditavam que os outros deviam estar vendo o tecido. ‘Não é possível!’, pensou o rei. ‘Eu nada vejo! Isso é horrível! Serei tão estúpido, ou simplesmente não servirei para ser rei? Seria a pior coisa que me poderia acontecer!’ É, de fato, muito belo - disse ele. - Tem minha inteira aprovação! E sacudiu satisfeito a cabeça, contemplando o tear vazio.
Não queria dizer que nada via. Os numerosos componentes da comitiva, sem exceção, olhavam, mas, por mais que o fizessem, nada logravam ver. Secundaram, porém, o rei em seus elogios.
Como é bonito! - diziam, aconselhando o rei a mandar fazer um traje daquela magnífica fazenda e a usá-la, pela primeira vez, na grande procissão que iria realizar-se dali a dias. Magnífico! Esplêndido! Formidável! - eram as exclamações que se ouviam, de boca em boca.
O rei condecorou os dois trapaceiros e deu-lhes o título de Cavaleiros do Tear.
Os trapaceiros passaram, em claro, a noite que precedeu a manhã da procissão, com dezenas de luzes acesas. Todos podiam ver que trabalhavam febrilmente, empenhados em terminar as roupas do rei. Fizeram de conta que retiravam o pano do tear e o cortavam no espaço com grandes tesouras, costurando-o com agulhas sem linha.
As roupas estão prontas! - anunciaram por fim.
O rei compareceu ao local, acompanhado por seus mais nobres cavaleiros. Os dois trapaceiros ergueram o braço, fingindo segurar alguma coisa. Aqui estão as calças. Cá está o casaco. E aqui, o manto - disseram. - O tecido é tão leve como teia de aranha. Parece que não se tem nada no corpo. Nisso está a grande virtude dele ... O rei tirou a roupa, e os trapaceiros fingiram dar-lhe, peça por peça, o traje novo.
Como ficam bem! São esplêndidos estes novos trajes! Que padrões! Que cores! - era o que se ouvia ao redor.
E assim o rei desfilou na procissão, enquanto nas ruas e nas janelas todos comentavam: meu Deus, como são lindos os novos trajes do rei! Como lhe ficam bem!
Todos dissimulavam, ocultavam que não estavam vendo coisa alguma, pois do contrário, teriam passado por imprestáveis para o cargo que ocupavam, ou se revelariam néscios. Nenhuma roupa do rei havia despertado tanta admiração.
O rei está nu! - disse uma criança.
Meu Deus! Falou a voz da inocência! - disse o pai da criança. E cochichou para outro o que a criança dissera. Ele está nu - correu de boca em boca. - Uma criança está dizendo que ele está nu.
Ele está nu! - clamava, por fim, todo o povo.
O rei sentiu um abalo, pois lhe parecia que falavam a verdade. “Agora tenho que agüentar, até o fim, a procissão - murmurou ele - Aprumou ainda mais o corpo, e os camareiros, solenes, continuaram a segurar o manto que não existia”.
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Filosofia e Ideologia
No item anterior, vimos que a crítica exerce a função de desnudar a realidade, descobrir a gênese do processo ou o conteúdo do silenciado. Pois bem, o “conteúdo silenciado” nada mais é do que a própria ideologia. Qual o conceito de ideologia? Qual sua função? É o que veremos agora.
Como a palavra crítica, ideologia é também uma palavra nova. Foi criada ao tempo de Napoleão, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, para significar a ciência das idéias, compreendendo seu estudo e seu desenvolvimento. Posteriormente assumiu outros sentidos.

Concepção geral de ideologia
No sentido amplo, ideologia é o conjunto de idéias, doutrinas, concepções e opiniões sobre algum ponto polêmico. Ideologia é conjunto sistemático de conhecimentos intencionalmente destinados a orientar ações imediatas[10]. Neste sentido, se enquadram as seguintes perguntas, entre outras: Qual é a ideologia desta escola? Qual a ideologia desse partido?

Concepção estrita de ideologia
Marx teve um mérito muito grande para a evolução histórica e semântica da palavra ideologia. Deu-lhe um conteúdo conceitual de ordem econômica e política. Ainda é uma caracterização imperfeita, pois reduz a amplitude existencial do homem à esfera do econômico e do político. Mas este passo inicial teria que ser dado.
Nesta perspectiva, a ideologia é uma consciência invertida[11] da realidade, elaborada pela classe dominante, com a finalidade de mascarar a divisão de classe, mantendo assim a situação vigente de dominação. Nesta visão, a ideologia é algo inteiramente negativo e insidioso.
A citação, abaixo, de Marilena Chauí, é uma explicitação e atualização do pensamento marxista.

O que é ideologia?
...ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, e que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade, dividida em classes, uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. (CHAUI. 1980 : 113).
Nesta citação, identificamos as seguintes proposições explícitas ou implícitas, sinalizando que: a) ideologia não é mentira. Mentira é pensar uma coisa e dizer outra[12]– nela não há representação; b) ideologia é um discurso lógico, sistemático e coerente; c) ideologia é prescritiva: impõe o que se deve pensar e como se deve pensar, o que se deve valorizar e como se deve valorizar, o que se deve sentir e como se deve sentir, o que se deve fazer e como se deve fazer; d) ideologia assegura a coesão social e a aceitação, sem críticas, das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da “vontade de Deus” ou do “ dever moral” ou como decorrência da ordem natural das coisas; e) a ideologia tem a função de justificar as diferenças sociais, sem jamais atribuí-las à divisão de classe – que é o conteúdo silenciado (no caso propositalmente, para enganar).
Glosando o texto de Marilena Chauí com as idéias de Pierre Furter p. 51-60 - Maria Lúcia Aranha, p. 61-68, Gilberto Cotrim, p. 56-61, podemos relacionar, na perspectiva mar-xista, as seguintes características nefastas da ideologia:
Naturalização: considerar como obra da natureza, situações que, na realidade, são pro-duzidas pela ação humana e, como tal, são situações históricas e não naturais: quando, por exemplo, se considera-se natural que a sociedade seja dividida entre ricos e pobre, ou que uns nasceram para mandar e outros para obedecer
Anterioridade: em razão desta anterioridade, deste apriorismo, como assinala muito bem o texto citado, a ideologia predetermina o pensamento e a ação, desprezando a situação histórica, a realidade social vigente e a prática, na qual cada pessoa se insere, vive e produz. È em nome desta anterioridade e deste apriorismo que se introduz no imaginário do povo a concepção de que as idéias caem do céu, ou são gestadas nas cabeças de pessoas privilegiadas, quando, na realidade, sua matriz é a luta do ser humano para conseguir sua subsistência. Generalização (abstração): Aqui temos duas linhas de raciocínio: a) a ideologia tem como finalidade produzir um consumo coletivo em torno a certas idéias, valores, normas, regras e preceitos. Com isto, generaliza para toda a sociedade aquilo que corresponde aos interesses específicos dos grupos ou das classes dominantes; b) a ideologia desvincula as idéias do plano real para o plano da abstração. Quando se diz: “o trabalho dignifica o homem”, isto é uma abstração, pois não está de acordo com a realidade. Quando se faz afirmação desse tipo, é que se desconhece (geralmente de propósito) a gênese do processo, pois o trabalho alienado ou do “bóia-fria” não dignifica ninguém..
Lacuna:
“...a ideologia desenvolve-se sobre uma lógica construída na base de lacunas, omissões, de silêncios e de saltos. Uma lógica montada para ocultar em vez de revelar, falsear em vez de esclarecer, esconder em vez de descobrir. A eficiência de uma ideologia depende de sua capacidade para ocultar sua origem, sua lacuna e sua finalidade. Suas ‘verdades’ devem parecer[13] naturais, plenamente justificadas, válidas para todos os homens e para todo e sempre”.
“A lógica ideológica só pode manter-se pela ocultação de sua gênese, isto é, a divisão social das classes, pois, sendo missão da ideologia dissimular a existência dessa divisão, uma ideologia que revelasse sua própria origem se autodestruiria”. (CONTRIN, 1997 : 57-58).
Exemplo de lacuna: “Todos têm direito à educação”. O discurso não diz que esse “todos” só se refere aos que possuem condições de subsistência não só material mas cultural.
Essa afirmação é lacunar, ao apresentar como universal aquilo que não beneficia a todos: os pobres, por diversos motivos, acabam ficando de fora. Por muito lógicas que sejam as justificações que se dêem, o que permanece oculto é que há contradição entre os que, com seu trabalho, produzem a riqueza material e cultural e os que se apossam dessas riquezas. Portanto, analisando a gênese do processo, descobre-se que a educação está restrita, em grande parte, aos que detêm o poder.
Alienação: o conceito de alienação tem vários sentidos. No sentido jurídico, alienada é a pessoa que perde a posse de um bem ou de um direito; para a psiquiatria, é a pessoa que perde a dimensão de si na relação com os outros; no sectarismo, radicalismo e idolatria, perde-se a autonomia. Etimologicamente, alienação vem do latim “alienare” → “alienus” que pertence ao outro; “alius” é o outro. Alienar é transferir para o outro aquilo que é seu.
Para os neo-marxistas, alienação é o estado da pessoa que retira as explicações de sua situação, não do mundo objetivo, mas de um mundo que não existe ou é transcendente. A alienação desvia os dominados de encontrar a gênese do processo, de ter uma consciência correta da realidade. Sua consciência da realidade é invertida, por imposição da classe dominante. Como exemplo, poderíamos aduzir a seguinte pergunta: qual a causa de sua pobreza? Geralmente as pessoas não sabem identificar a verdadeira causa de sua situação, colocando-a onde ela não está: porque Deus não quis, ou, porque não gosto de trabalhar, ou, não sei administrar; quando sabemos que a causa, na maioria absoluta das vezes, está na sociedade exclusivista, competitiva, dominadora.
Mito e Mistificação: Mito aqui é tomado em sua concepção popular, isto é, como meio de levar a pessoa ao terreno do imaginário puro[14]. Mistificação vem de mistério; é tornar uma coisa misteriosa, inacessível ao comum dos mortais.. Tanto o mito quanto a mistificação produz a fuga dos verdadeiros problemas e de suas adequadas soluções. Exemplo de mito: riqueza, prazeres, conforto, como fatores únicos de felicidade; globalização, livre mercado como solução para os problemas humanos. Exemplo de mistificação: democracia[15] é regime político para os deuses e não para os homens, filosofia é só para os inteligentes. Falta de chuva é um mistério, logo, vamos rezar para chover, pois só Deus pode desvendar mistério.
Coisificação: A coisificação tem dois sentidos:
a - tratar o homem como coisa. Exemplo: Ronaldinho é Nike. Sua saúde não tem importância diante do prejuízo da Nike;[16]
b - transformar o provisório em permanente. Exemplo: ”o mercado resolve tudo”; ou a corrupção nasceu com o Brasil, logo...
Inversão causa e efeito: Exemplo: “A preguiça causa a pobreza”. A psicosociologia mostra o contrário.
Supervalorização da teoria ou inversão da relação teoria/prática:
Numa visão praxeológica do mundo, a prática está impregnada de teoria. Ambas estão em pé de igualdade, tendo o mesmo valor.[17]
Pois bem, a ideologia, no afã de mascarar a realidade, coloca a teoria acima da prática. Se a teoria é a iluminadora da prática, como ensinara Kant, ela é mais importante do que a prática; sendo a prática mera aplicação da teoria – é o que insufla a ideologia. Exemplo: “dificilmente você encontra a estátua de um operário nas praças, em contraposição, de intelectuais, se encontram muitas”. A tese de que as idéias movem o mundo é altamente ideológica.
Concepção de ideologia na visão de Gramsci
A posição de Antonio Gramsci não é excludente à de Marx, mas complementar. Ele distingue duas espécies de ideologia: ideologia arbitrária e ideologia orgânica. A primeira é a própria concepção de Marx, já exposta. Quanto à segunda espécie de ideologia, Gramsci julga-a historicamente necessária porque ‘organiza as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.
Nesse sentido – pondera Gramsci – a ideologia se manifesta “ implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas e que têm por função conservar a unidade de todo o bloco social”[18]
Concepção de ideologia na visão de Mannheim
Em sua importante obra Utopia e Ideologia publicada pela primeira vez em 1928, este famoso sociólogo distingue duas espécies de ideologia: particular e total. A ideologia particular se identifica com a conceituação de Marx. .
Como ideologia total, Mannheim entende “um conjunto de idéias que mantêm a ordem estabelecida”, em que não entra nenhum juízo de valor. É um fato social que não foi elaborado nem por um indivíduo, nem por um grupo de intelectuais, como no caso da ideologia particular, mas que, muitas vezes, existe como consciência possível da realidade.
Tanto na perspectiva de Gramsci quanto na de Mannheim, a ideologia oferece algumas qualidades que passamos a explicitar. Primeiramente, podemos dizer que ela favorece o diálogo. Por ser provisória, a ideologia permite um diálogo proveitoso “aqui e agora”, tendo em vista a prática imediata. Em que pese ser uma interpretação provisória da realidade, ela ajuda a entender a ação e nos induz, ou, pelo menos, sugere um engajamento nela. Neste sentido, a ideologia seria uma aposta, um risco, mas um risco necessário. Não se proceder assim, males piores poderiam advir. É neste sentido que dizemos que Partido Político bom é aquele que é guiado por uma ideologia. Neste sentido, também, Gazuza pôde cantar: “Quero uma ideologia para viver”.
Notas de rodapé
[1] O que faz a diferença entre a indução pré-científica e a científica é a quantificação ou matema-
tização das variáveis ou do conhecimento. Até aí, a matemática era usada somente como meio de educação, dado que o homem, ser espacial que é, tem de se localizar no espaço.
[2] Rever o Cap anterior sobre este assunto.
[3] Há uma diferença entre instrumento técnico e tecnológico, o primeiro aumenta a força física, o segundo, aumenta a precisão.
[4] Cientificismo é a crença infundada de que a ciência conhece tudo e, assim, é capaz de resolver todos os problemas. É uma espécie de magia, com poderio ilimitado sobre as coisas e os homens; um tipo de Religião, sito um conjunto doutrinário de verdades intemporais, inconcussas, inquestionáveis.
[5] Não estamos advogando que a filosofia perca a característica da subjetividade que é um dos marcos de sua individualidade, mas que se diminua ou se elimine seu subjetivismo que é um vício
[6] Este sentido se enquadra no pensamento de Kant. A propósito do verbo decidir, podemos asseverar o seguinte: quem não possui uma utopia, quem não tem na cabeça uma saída para a questão, quem não é detentor de um modo fundamentado e coerente de fazer, ou seja, quem não é utópico, mas “utopista”, não tem direito de criticar. Se a crítica só se contenta com seu lado negativo, sem apontar uma saída, não passará de um fogo fátuo ou de um sino que retine e nada mais; ao lado de denunciar, ela não tem direito de criticar, de denunciar, com ensina Paulo Freire.
75 Aqui se insere a posição da Escola de Frankfurt, para a qual, a crítica deve impedir que os seres humanos se abandonem irrefletidamente às idéias e formas de conduta instituídas socialmente e que as ações e fins do ser humano não devem ser produtos da necessidade (KOHAN, 2000 : 26).
Também aqui se identifica o pensamento de Michel Foucault, para quem a crítica ‘é tornar difíceis
coisas fáceis, é ‘desnaturalizar ‘ o mundo, a desbanalizar o quotidiano, torná-lo mais complexo, menos óbvio. A crítica nos força ver o mundo como ‘se fosse a primeira vez’ (idem, idem)
[8] Neste terceiro sentido, situa-se o pensamento de Larrosa, para quem , a crítica é a abertura do espaço ético ‘à inquietude, à sensibilidade, à atenção’, situando-se ‘fora das morais afirmativas, não qües-
tionando uma moral para sua troca por outra, não denunciando uma falsa moral e o “advenimento” da moral verdadeira’; afinal a crítica é a ‘afirmação do valor da não-conformidade, da insatisfação, da abertura’ (KOHAN, idem, p. 27).
[9]Na filosofia tradicional, afirmava-se que a verdade era adequação entre a mente e a realidade ex- terna; nesse sentido, crítica pode ser oposição entre verdade e erro. No sentido atual de verdade,
não (consultar cap. 10).
78 A ideologia não dá o braço a torcer. Se ela se mostrasse defeituosa, ninguém aaceitaria. 79 Não é a toa que um gaiato afirmou que Deus criou o mundo e o diabo veio e o colocou de cabeça para baixo.
[12] No terreno do fazer, a mentira se transforma em dolo – que é pensar uma coisa e fazer outra, com o
o fito de enganar.
[14] Na concepção histórico-filosófica, ver o cap. 03
[15] De fato democracia perfeita não existe. Toda democracia é um projeto que está em processo de realização. Seu sucesso dependerá muito da educação do povo.
[16]Referência à Copa de Futebol da França em 2002, em que a Nike patrocinava a CBF e impôs a participação de Ronaldo, o fenômeno, em condições de saúde adversa para o atleta.
[17] Em nosso livro, Dialética - A Terceira Via da Educação: De Heráclito a Paulo Freire, cap.02, tratamos largamente deste assunto.
[18] Ver Concepção dialética da História, 6ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,

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