segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

ORIGEM DA FILOSOFIA

CAPÍTULO 03

Na história, os obedientes são castigados e a desobediência é premiada (Mangabeira Unger)

ORIGEM DA FILOSOFIA

A filosofia ocidental, de que trata este livro, provém de três fontes principais: mito, filosofia oriental e fatores de ordem histórica.
1) Mito
Plenipotenciário nos tempos arcaicos (tempos primordiais), mas desprezado por Aristóteles e toda tradição clássica, o mito volta vigorosamente no século XX. Aristóteles, na esteira de Xenófanes, deu a entender que a filosofia foi criada para substituir o mito, entretanto, o mito continua hoje vigoroso como nunca, não se confirmando a previsão do grande pensador. Mas, convenhamos que Aristóteles contribuiu para que o mito ficasse fora do campo por muitos séculos. Só no século XX, é que vai ser reabilitado[1]. Chegou-se à conclusão de que todas as formas de conhecimento são necessárias para o progresso e hominização do ser humano.

Mito: conceituação e características
O mito vale-se da linguagem figurada, metafórica, fantástica, para configurar a compreensão[2] da realidade em geral e os fatos da existência ou a própria existência. É uma narrativa autêntica, preciosa e fantástica, porque apela para as forças da fantasia que não têm coerência interna, é contraditória, e, por isso, sujeita a manipulações. Assim, quanto à sua fidedignidade, não se apóia ela sobre a logicidade do conteúdo, mas na autoridade do narrador, mesmo que este não tenha presenciado o fato, mas tenha ouvido de outros. Sendo objeto da fantasia, não é crítico, mas objeto de crença, não sendo, por isso, passível de discussão.
O mito atende a dois impulsos fundamentais do ser humano. Um de fuga diante dos perigos do mundo; fuga que não é desespero, mas apaziguamento e tranqüilização propiciados pela presença dos deuses. O outro impulso está ligado aos instintos, forças poderosas que impulsionam os humanos em seu processo de hominização – uma questão de satisfação dos desejos. Não podendo satisfazer esses desejos, involuntariamente, cria-se o mito (no caso utopia) que satisfaz ou antecipa a satisfação dos desejos.
Não sendo objeto de discussão, o mito canaliza as emoções coletivas, tranqüilizando o homem no mundo que o ameaça. Segundo Gusdorf, o mito não é uma produção pessoal, mas coletiva, visto a consciência individual estar dissolvida na consciência coletiva. Isto, continua Gusdorf, não é negação da individualidade, desde que se entenda a individualidade como “um nó no tecido das relações sociais...o eu se afirma pelos outros...” [3]
É verdade que o mito hoje é empregado como sinônimo de ficção ou de ilusão, mas continua ainda de pé sua condição de revelação do sagrado dos tempos primordiais, fabulosos. É a narrativa de uma coisa ou do comportamento humano.
Conhecer os mitos é apreender o segredo da origem , é apreender como as coisas vieram à existência, como encontrá-las, como fazer com que reapareçam e desapareçam (Elíade, p. 16).
O mito está ligado ao primeiro conhecimento que o homem adquiriu sobre si mesmo e sobre o meio. Ele não é doutrina, mas apreensão das coisas, dos seres e do próprio homem. O mito trata de condutas e atitudes, da inserção do homem na realidade. Em seu contexto vivido, o mito afirma-se como modo espontâneo do homem ser no mundo.
Por seu caráter sagrado, exemplar e significativo o mito é um contexto compreensivo.
O mito explica[4], não com as estruturas da razão, mas com a fenomenologia da emoção e da afetividade. O mito é pré-reflexivo, vivenciado. Note-se que o mito, nutrindo-se de afeto, não usando todos os recursos da razão, facilmente pode ser manipulado pelas ideologias.
O mito é uma forma autônoma de pensamento e de organização cognitiva do mundo; é uma forma não secundária nem subordinada ao conhecimento racional que, ao contrário, com o qual está entrelaçado (Jung);
Os mitos são representações psíquicas que manifestam a essência da alma[5];
O homem não inventa os mitos, ele apenas os vivencia (Jung).
Os mitos são revelações da psique pré-consciente; são revelações inconscientes a respeito de acontecimentos psíquicos.
Os mitos têm um significado vital; a perda desse significado, mesmo para o homem civi-lizado, sinaliza uma catástrofe moral, melhor, catástrofe ética.[6]
Os mitos têm significado psicoterapêutico, até mesmo em nossos dias (Jung).
Os mitos são narrações verdadeiras e compreensivas do sagrado, do exemplar, do sig-nificativo e compreensivas do mundo e tudo que nele existe.

Como o mito narra a origem do mundo e tudo que nele existe?[7]
De três maneiras principais ou de três encontros de deuses:
Encontro do pai e da mãe das coisas e do seres, ou seja, tudo provem de relações sexuais entre os deuses (forças divinas). Essas relações geram os titãs (seres semi-humanos e semi-divinos), geram os heróis (filhos de deus com uma humana ou filhos de uma deusa com um humano), geram o reino mineral, o reino vegetal, o reino animal, o reino humano e todas as qualidades (como quente/frio, seco/úmido, claro/escuro, bem/mal, justo/injusto, belo/feio, certo/errado, etc). Ver exemplo abaixo;
Encontro de rivais ou de aliados. Nesse caso o mito narra uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança para provocar a emergência de alguma coisa no mundo dos humanos;
Encontro dos deuses para recompensa ou castigo. Recompensa para quem obedece e castigo para os desobedientes.
Exemplos de narrativa mítica:
- Criação do deus Eros, na apresentação de Marilena Chauí:
Houve uma festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria aparece; apareceu, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, inventa mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado.(CHAUI, p. 35).
- Criação do homem: Prometeu, um titã ou semideus (sem a permissão de Zeus) idealizou criar o homem. Fez um boneco de barro e para dar-lhe vida, roubou o fogo do monte Olimpo.
Em castigo, Zeus ordenou que fosse amarrado ao monte Cáucaso onde toda a noite aparecia um abutre para comer um pedaço de seu fígado.
- Aparecimento dos males: Ainda relacionado com o castigo pela criação do homem, temos o mito de Pandora.
Ao fugir do monte Olimpo transportando o fogo que deveria dar vida ao homem, Prometeu foi atingido por uma caixa lançada em suas mãos pelo porteiro da morada dos deuses. Prometeu entregou a caixa para seu irmão Epimeteu, este a passou à sua esposa Pandora. Esta, mulher de estonteante beleza, mas de uma curiosidade sem medida, abriu a caixa, e de dentro dela saíram todos os males que se espalharam pelo mundo. Pandora, no entanto, teve a esperteza suficiente para fechar a caixa, antes de escapar o maior tesouro da humanidade, que é a esperança.
Os mitos são comandados pela fantasia e imaginação; apesar de contraditórios, não são críticos.
Diante das ameaças do mundo, os mitos tranqüilizam o ser humano e o acalmam. Os mitos são o modo expontâneo de o homem viver no mundo.
Renê Guenon afirma que devemos reconhecer que o conhecimento mito-poético é mais importante que o conhecimento racional. Sabemos que Nietzsche defende a superioridade do mito sobre a razão e faz deste a alavanca de toda sua filosofia.

O mito hoje
Já foi lembrado que o mito teve e ainda tem uma missão apaziguadora e tranqüilizante. Hoje podemos dizer que o mito assume duas situações de certa maneira similares. Primeiro quando ele se reduz a um conjunto de elementos materiais, que a sociologia denomina de fetiche. São elementos que galvanizam (imantam) as pessoas de tal maneira que, as mais das vezes, atrapalham seu desempenho na vida social. Aqui podemos lembrar alguns colecionadores que, objetivamente falando, são uns autênticos maníacos. Do mesmo modo, encontramos pessoas ou grupos de pessoas (organizações) que também cumprem este papel galvanizador ou imantador. Há pessoas que são fãs incondicionais (geralmente sectários) de, por exemplo um clube esportivo, ou de um superstar na política, no esporte, na música, etc. Nesta situação, o mito pode ter seu lado bom , quando o superstar é um modelo de vida (exemplo : Jesus Cristo, Buda, Confúcio, Ghandi, Luter King, Chico Mendes e tantos mais) e apaziguar as pessoas, trazendo-lhes congruência.

Passagem do mito para a filosofia
A passagem do mito para a filosofia durou muito tempo (séculos). Não houve “o Milagre grego”. O certo é que a existência do mito foi indispensável para a emergência da filosofia, pois a razão, instrumento da filosofia, foi se constituindo aos poucos através da história.
Entretanto, dada a multiplicidade, a plurivariância, a multifuncionalidade e a multidimensionalidade das coisas, dado que o caos universal deveria ser transformado em
cosmos; dado que tamanha diversidade deveria se unir em alguma instância, a razão desabrochando , tornando-se essa instância.[8]
Como se pensou por muitos séculos, a passagem do mito (da fantasia) para a filosofia (razão) não se deu em curto prazo de tempo. O que se chama na História de “O milagre grego” não aconteceu, tratando-se de uma visão simplista e ahistórica. O surgimento da filosofia foi um processo historicamente lento que veio sendo preparado lentamente por um passado mítico, cujas raízes permeiam ainda a nova consciência emergente (Gusdorf).
Por tudo isto, o mito é importante, mas não se pode negar que algo faltava à humanidade no plano do conhecimento, para tentar transformar o caos em cosmos. É isto que deixa muito claro o filósofo Anaxágoras (VI/V a. C.): “Tudo era um caos até que se ergueu a mente, para pôr ordem nas coisas”.
Apesar da posição abalizada de Giovanni Reale [9] e de outros pensadores, cresce o seguimento daqueles que estão a favor da tese de que, a nível de pensamento, o que aconteceu na Grécia, já havia sido feito no mundo oriental. O historiador René Guenon, certamente, inspirado em Nietszche, dirá que a filosofia é apenas um momento secundário da história espiritual da humanidade e que tudo aquilo que estava feito no Egito, na Babilônia, na Índia, é extremamente mais importante do que aquilo que os gregos fizeram, não tendo havido a distinção completa preconizada por Reale, entre conhecimento mito-poético e conhecimento racional.

1 - Influência da filosofia indiana na filosofia grega
1.1 - Tanto uma como a outra, tem a mesma matriz: ambas nasceram da religião, ou
melhor, da mitologia;
1.2 - A filosofia grega se afasta da religião e se torna individualista; ao passo que a
filosofia indiana continua substancialmente ligada à religião e conserva seu caráter
coletivista (PADOVANI, 1984 : 64);
1.3 - Os princípios da filosofia indiana são bem anteriores ao pensamento grego, colo-
cando-se lá pelos anos mil antes de Cristo, havendo fortes indícios de que a filosofia
grega não ficou imune às influências da filosofia indiana, e mesmo da filosofia
chinesa (iniciada no séc. VI);
1.4- A salvação está no conhecimento (Sócrates e Aristóteles);
1.5 - A filosofia Maya contém muitos elementos lógicos semelhantes aos contidos na
doutrina do silogismo de Aristóteles (Padovani, p. 81);
1.6 - O dualismo eterno do espírito e da matéria difundido pelos gregos (Aristóteles) já se
encontrava na filosofia de Kanada e no Jainismo (Franca, p.22/23);
1.7 - A doutrina do samsara que apregoa o evoluir conflitante da realidade pode ter
influenciado no “vir a ser” de Heráclito (Padovani. p. 66);
1.8 - Na linha de pensamento platônico se inclui Buda, quando este sinaliza: “É loucura
apegar- se à vida e é sabedoria libertar-se dela” (Padovani., p. 78);
1.9 - Também o Ioga dos Upanixades lembra muito o Mundo das Idéias de Platão,
quando este ensina que a solução do problema da vida está na evasão do mundo
sensível, procurada não pela via prática, mas pela via teorética e contemplativa;
1.10 - Os sofistas indianos devem ter influenciado os sofistas gregos; também eles são
críticos, céticos, relativistas, imorais (Protágoras), mundanos, interesseiros e de-
molidores do conhecimento racional bem como do conhecimento mítico (Padovani,
p.67/68);
1.11 - Quando os Upanixades (séc.VII) ensinam que a essência do homem é a alma
(parablata, alma e idéia é mesma coisa) e que o mundo físico é a decadência da espi-
ritualidade, lembra Platão, com seu mundo das idéias;
1.12 - Platão deve ter sido influenciado pelos Upanixades, quando estes exaltam uma
moral acética, considerando os bens do mundo como vãos e ilusórios;
1.13 - Possivelmente, o intelectualismo aristotélico teve influência dos Upanixdes.Tanto
para estes quanto para Aristóteles, a finalidade do ser humano é o conhecimento;

2 – Influência da filosofia chinesa na filosofia grega
2.1 – Para Aristóteles, a razão é a norma suprema que norteia o agir humano. Possível-
mente, ele se inspirou em Lao-tsê que viveu 200 anos antes (este mostra tendências
altamente especulativas); afirma que acima de todas as coisas, existe a razão, norma
absoluta de toda atividade moral (Franca, p.27);
2.2 – Confúcio insistia muito sobre o amor ao próximo, a piedade filial, o desprezo da
riqueza e das honrarias – tudo isto lembra Sócrates e o estóicos;
2.3 – Heráclito, criador da dialética (grega) certamente conhecia a polaridade chi-
nessa do YIN VERSUS YANG que são forças polares complementares do universo,
cuja tensão e conflito resultam em equilíbrio, ordem e mudança. Esta polaridade é
fundamental no Confucionismo e no Taoismo (Rohmann).

3 - Fatores de ordem histórica, da emergência da filosofia
A filosofia é filha da história; ela não é algo que precede à história. Não é um a priori.
Cada contexto sócio histórico tem sua filosofia própria que não se confunde com a de outros contextos sócio-históricos. Não é por acaso que a filosofia vai nascer e progredir com todo viço na Grécia. Pois antes dela, já vicejavam na pátria dos gregos, a organização política, as leis, as letras, a moeda, as cidades.
Se não tivesse havido a precedência desses fatos históricos, a filosofia não teria sobrevida.
Em vista disso, para entendermos melhor a emergência da filosofia, necessário se faz relacionar e enfatizar os referidos fatos. Desses lembraremos, em seguida, os mais significativos.
A História sinaliza que a filosofia está presa às ideologias e ao poder dominante. Integrante da condição humana, engajada na luta contra-ideológica e contra-hegemônica, a filosofia é também caudatária do poder político. Se ela vai progredir abertamente na Grécia é por causa da hegemonia política e econômica dos gregos, que, vencendo o poderosíssimo Império Persa, assume o controle mundial. E, se, hoje, está a pleno vapor nos Estados Unidos, é por causa da supremacia mundial do Tio Sam.[10]
O afloramento da Política se transformou no mais importante elemento propulsor do uso da razão que é o instrumento por excelência da Filosofia. Aliás entre Política e Filosofia haverá uma forte relação dialética – uma não existiria sem a outra.
A propósito, vamos lembrar a posição abalizada de Castoriadis e Ranciére que afirmam categoricamente que política (democracia) e filosofia nasceram juntas, na referida relação dialética. A filosofia teria nascido órfã se não fosse o contexto hegemônico que vivia a Grécia a partir do século VIII a. c. com a vitória dos gregos contra os troianos. Depois vieram as vitórias memoráveis dos gregos contra o poderoso Império persa. Assim, a Grécia por muitos anos (mais de duzentos) dominou politicamente o mundo, até a supremacia dos romanos. Em Roma, como já acontecia em algumas cidades gregas (Esparta, por exemplo), a filosofia vai progredir pouco, possivelmente por causa de sua agressividade bélica excessiva. Quanto à Grécia, em geral, gozava ela de soberania universal, enquanto o Médio e o Extremo Oriente passavam por crises políticas.
Outro fator importante foi a criação das cidades. Falar em público é diferente de falar no recôndito dos lares sob o olhar complacente do chefe e de outros familiares. Agora, falar em público exige circunspecção e prudência para expressar o pensamento.
Outro fator é o aparecimento das leis. Sob o olhar vigilante da lei, o homem é obrigado a pensar mais, pois antes, os crimes eram julgados pelos senhores feudais que conheciam pessoalmente seus súditos. Agora, o julgamento se faz pela aplicação de leis abstratas que exigem especialistas. Isto exige um pensamento mais acurado. Onde há pensamento acurado, a filosofia está presente.
Fator relevante é a invenção da escrita. Falar não exige lá muita responsabilidade. As palavras voam, mas a escrita fica. Exige que se pense muito para não deixar para a posteridade coisas que não se deve dizer.
Finalmente, vamos lembrar a criação da moeda. Antes, as trocas eram feitas em espécie, que não exigiam muito raciocínio. Os olhos e a força física eram os juízes. Agora, sendo as trocas feitas com moedas e sendo essas, uma abstração, exige-se mais a força do pensamento.
Notas de rodapé
[1] Tal reabilitação é atribuída principalmente a Nietzsche que fez do mito o eixo em torno do qual
girou toda sua impactante filosofia.
[2] Compreender a realidade é ir a seu encontro com tudo que somos: mente, corpo, coração, afetos,
emoções, paixões, estados de espírito, etc. Ver capítulo anterior.
[3] Gusdorf, apud Aranha e Martins, p. 73
[4] Na realidade o mito não explica, pois esta é obra da ciência – o mito compreende (ver cap. 02)
[5] O mito é o desnudamento total da alma
[6] Ética trata do que, por excelência, é inerente ao ser humano: sua vida, ao passo que a moral trata do
trata do que é externo ao ser humano: leis, costumes.
[7] Neste item acompanhamos Marilena Chauí em seu livro Convite à filosofia, 13 ª ed. p. 35
[8] A palavra razão vem do verbo “reor” que significa recolher. A razão recolhe essa infinidade de
coisas e as unifica a nível abstrato.
[9] Giovanni Reale ( Marilena também) nega que tenha havido a influência da Filosofia Oriental na Filosofia ocidental.
[10]A força do programa de filosofia para crianças, do Prof. Lipman certamente está ligado a este poderio.

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